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quarta-feira, março 12, 2014

ENQUANTO SONHAVA E A VIDA PASSAVA



   Maria viveu sua adolescência num meio onde o papel higiênico eram folhas de ervas daninhas, detergente era luxo da cidade, sabonete era sabão caseiro feito com um dos porcos que não sobreviveu para o abate, só se ouvia rádios AM e se frequentava a igreja no final de semana.
   Em seu colchão de palhas de milho sonhava em concluir as séries primárias na escola isolada, recentemente batizada de multisseriada e poder ser matriculada na Escola Básica. Não deu certo. Teve que ajudar a mãe a trocar as fraldas e a dar mamadeira para o irmão, estender as roupas lavadas na cerca de arame farpado, confeccionar a vassoura que o pai acomodado adiava, degolar a galinha que seria assada no domingo, preparar o pão de milho, levantar de madrugada para carregar os frangos do aviário do vizinho, descarregar as espigas de milho e as abóboras ao entardecer.
   Trabalhando, percorrendo caminhos, colhendo frutas na propriedade vizinha, brincando nos cipós, onde quer que estivesse, estava com seus pensamentos voltados para o futuro.
   Queria aprender, almejava ser uma criatura culta. Por isso sintonizava o antigo rádio à pilha em emissoras de São Paulo, para ouvir debates sobre economia, política, educação, etc. Lia os jornais que envolviam as raras compras feitas pelo pai e as revistas que seriam eliminadas pela professora Tereza, onde descobriu uma foto do desconhecido Mick Jagger, em 1970.
  Vivia no telhado da casa ajustando a posição da antena para assistir aos programas da Globo, único canal acessível. A televisão a hipnotizava. Não podia assistir aos programas infantis porque havia sido proibida por deixar de cumprir as precoces obrigações com a casa. Mas não resistia! O medo de ser flagrada pelo pai que poderia chegar de repente do trabalho na lavoura a fazia ficar com um olho nos desenhos animados e o outro na fresta da janela. Mesmo assim era arriscado: se desligasse a velha Telefunken, poderia ser desmascarada pelo maldito ponto luminoso no centro da tela que demorava a desaparecer e se usasse sua artimanha - escurecer totalmente a imagem e diminuir todo o volume – poderia se denunciar na presença do pai, pois seu coração acelerava e a ansiedade aumentava na medida em que ele se prolongasse, tomando a água gelada diante da geladeira.
   Talvez tenha sido essa curiosidade ilimitada e a vontade enlouquecedora de saber mais que a fez devorar módulos do supletivo, passar com segurança pelos bancos que lhe garantiram outros certificados e diplomas indispensáveis para abrir novas portas para o conhecimento.
   Suas conquistas parecem ter sido oportunizadas pela providência divina, gratificando-a por ser uma das sonhadoras que provam o que John Lennon cantava: “... não sou o único”.