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segunda-feira, janeiro 27, 2014

NEIVA E O TEMPO



   Neiva adorava usar batons coloridos no inverno, fumar durante os intervalos das aulas e rir das situações em que a vida a colocava. Ela era chamada de “A General” pelos alunos do colégio onde foi diretora por muitos anos. Poucos sabiam que aquela mulher de físico masculino, comportamento áspero e olhar determinado, era um “doce de pessoa”.
   Conhecê-la melhor, foi um presente que ganhei, sem imaginar que um dia pudesse aproveitar. Ouvir suas histórias era divertido. Vê-la filosofando era intrigante. Receber seus estímulos era energizante. Buscar seus conselhos era aconchegante. Certamente, ela não faz idéia de que hoje está sendo lembrada por alguém! E, muito menos, que o motivo dessas recordações são coisas simples, mas profundas, que um dia brincando de pensar expressou livremente.
   Neiva dizia não se conformar em ter que almoçar, colocar a louça sobre a pia, escovar os dentes e voltar depressa para o trabalho. Ela achava que as leis da natureza tinham de ser respeitadas, afinal, todas as pessoas sentem sono quando estão com o estômago cheio. Tirar uma sesta era um direito! No entanto, nem ela podia gozar deste prazer: as exigências da sociedade são mais poderosas que qualquer necessidade fisiológica.
   Neiva ria saudosamente quando falava sobre a filha que estudava e trabalhava de babá para um casal de médicos na Alemanha. Era engraçado observar as contradições que fazia: ao mesmo tempo em que criticava a falta de amor, atenção e carinho dos pais alemães para com o bebê – que soubera pelos relatos de sua filha – afirmava que estavam certos. É claro que lendo nas entrelinhas, percebemos que há ironias que favorecem o bom senso.
   Ela contava que quando tinha os três filhos ainda pequenos, ficou viúva e teve que dar um jeito de criá-los praticamente sozinha. Num domingo, quando estava no sítio de sua mãe, surpreendeu-se observando uma galinha com uma ninhada de pintinhos. Comparou as diferenças entre suas crianças e aqueles animaizinhos: os seus choravam em seus braços quando sentiam dor e os da galinha só piavam sem que esta se preocupasse; os seus exigiam a mamadeira pronta e os da galinha procuravam minhocas ciscando pelo terreiro; os seus sujavam fraldas e os da galinha estavam sempre limpos; os seus não a deixavam descansar tranquilamente e os da galinha não a incomodavam, apenas se aquietavam em suas penas. Apesar de não serem apropriadas essas análises, ela, tinha puramente a intenção de contestar as coisas que não lhe agradavam.
   Nos dias que acordo de uma noite mal dormida e brigando com todas as células do meu corpo, lembro da Neiva e questiono: “Por que não posso ficar nessa cama durante o tempo que eu quiser?” E a resposta, vem: “Porque você jamais mandará no tempo!”

segunda-feira, janeiro 13, 2014

ISCA DE ISCA



Quase todos nós já tivemos a oportunidade de acompanhar a retirada de minhocas da terra. Sabemos que basta procurar um terreno úmido e adubado - preferencialmente próximo a um chiqueiro ou num canto da horta onde se acumulam restos de comida - remover o solo com uma enxada e rapidamente veremos esses animais anelídeos se retorcendo desesperadamente. Sem demora, estarão dentro de um pote de margarina ou num vidro de café solúvel – vazios, é claro! - aguardando o momento em que serão úteis - para o Homem, é óbvio! - chamando a atenção de uma carpa. “Esses moluscos – como disse equivocadamente, certa repórter de televisão, pois minhocas apesar de terem o corpo mole não apresentam as mesmas características dos polvos – podem ser reproduzidos em cativeiro e auxiliam na decomposição orgânica, acelerando o processo de formação de húmus”.
Como todo ser vivo que existe na terra parece ter um semelhante no mar, como o leão e o leão-marinho, o cavalo e o cavalo-marinho, o boi e o peixe-boi, o cachorro e o peixe-cachorro, o rato e o cação-rato, o pepino e o pepino-do-mar, não é diferente com as minhocas. Vi algumas pessoas caçando minhocas do mar na praia do Cardoso, que aliás, seriam usadas como iscas. E para pegá-las era necessária outra isca: fígado de cação. Essa espécie de minhoca pode medir até dois metros de comprimento, porém, não se aproveita muito mais que vinte centímetros do seu corpo, pois a parte da cauda é extremamente sensível.
Como toda professora, também tenho dificuldades de me desvencilhar da realidade presente em sala de aula. Até as minhocas desenterradas da areia mexeram com as “minhocas da minha cabeça”. Fiquei pensando nas falas de Celso Antunes e Rubem Alves sobre a importância de saber cativar e educar. Imaginei a quantidade de iscas que procuramos todos os dias antes de irmos para as pescarias que raramente são abundantes, frequentemente dão o suficiente pra sobreviver ou resultam em grandes fracassos. É a nossa luta diária pela qual passamos enfrentando tempestades, sentindo medo de não estar usando os equipamentos corretos e de vez em quando, curtindo o nascer e o pôr do sol.
Os pescadores são diferentes de nós professores. Eles sabem qual é o tipo de peixe que tem na área e escolhem a melhor isca; nós, temos que capturar diversas espécies simultaneamente, desde aquelas que podem ser pegas com iscas simples, como as feitas de farinha de milho, àquelas que são exigentes e só são atraídas por camarão.
O dono de um dos restaurantes do Farol de Santa Marta contou que a Capitânia dos Portos fez um teste com cento e oitenta pescadores da região e descobriu que apenas dois sabem nadar. E, acrescentou: “Meu sogro morreu com quase noventa anos, desde criança se criou no mar, viveu pescando e se caísse na água, iria pro fundo na certa”. Os números são impressionantes. Pensei: “Como pode uma coisa dessas! Não parece concebível que pescadores não saibam nadar.  Se fosse três, quatro, cinco... mas, quase cem por cento deles! Apesar de viverem trabalhando sobre as ondas, eles as conhecem tão bem que não correm risco de morrer.”
Talvez, essa seja uma prova de que é possível sobreviver sem os conteúdos que a escola considera elementar para enfrentar os desafios do mundo. Ou, quem sabe, é um exemplo do quanto os pescadores da educação são capazes de fazer mesmo sem saber nadar direito e tendo algumas minhocas à mão.