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domingo, agosto 27, 2006

CRÔNICAS DE 2005





Crônicas escritas em 2005

128. O que você prefere para o próximo ano

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127. Trocando lixo por cultura

Jornal de Cocal: 2005

Rever esse texto.

Sempre há um líder num grupo, por mais fraco que ele seja. Não é difícil encontrar iniciativas quando objetivos e necessidades coexistem. Se houver um apoio experiente, as chances de atingir resultados satisfatórios, são elevadas. Porém, o que prevalece nas conquistas, é a determinação.
Tendo como meta realizar uma bela confraternização entre colegas que concluíam a oitava série, uma turma da periferia de Criciúma foi além da contribuição mensal, aprovada conjuntamente: resolveram vender papel para reciclagem. Uma das suas estratégias foi bater de porta em porta pedindo a colaboração dos demais estudantes da escola. Usando uma balança, emprestada pelo professor de Educação Física, pesavam os materiais recolhidos, imediatamente após o recebimento. O dinheiro arrecadado complementou o caixa.
Alguém comentou:
— É louvável essa idéia! Admiro essas crianças. Vão à luta , sozinhos. Sabem lucrar em prol da natureza.
No entanto, essa observação foi contestada por outra pessoa, que deu ouvidos aos comentários maldosos de quem tinha a intenção de denegrir a imagem do grupo por ciúmes ou ignorância nas conclusões:
— Acho bonito o que eles estão fazendo, porém, estão sendo desonestos molhando os papéis visando obter um aumento de peso. Disseram que na véspera da venda eles jogam água em cima das folhas e no dia seguinte elas parecem enrugadas e secas. No entanto, contém umidade suficiente para render mais.
O destino final do lixo não foi poluir o meio ambiente. Ele pode ser usado para ampliar a cultura, conhecer um pedaço da região.

126. Professora, diz se eu passei!

Jornal de Cocal: 2005

Mais um ano letivo se encerra. Professores, alunos e diversos pais concluem outra etapa de suas vidas; alguns com a sensação da missão cumprida, outros, nem tanto.

Há um eterno conflito entre a lei que estabelece duzentos dias de aula, a burocracia que exige tempo para deixar a documentação pronta e o interesse em não diminuir período de férias. Por isso, somos obrigados a realizar o Conselho de Classe antes de finalizar os dias letivos.

Após essa data, muitos alunos subentendem que não há mais nada a fazer em termos de nota, freqüência e aprendizagem. Portanto, a concentração diminui, decai o compromisso com as tarefas, alguns estudantes escolhem tirar uns dias de folga e a ansiedade em ver tudo acabado aumenta a cada instante.

É comum ver alunos indo ao encontro da professora que desembarca do carro ou anda pelos corredores, implorando: “Professora, diz se eu passei! Por favor!”. E, insistem, apesar de ouvirem a resposta: “Combinamos, junto com a Direção, que diremos os resultados finais somente no último dia que tivermos aula com vocês. Esperem um pouco. Nem tudo está definitivamente concluído.”

Quando a professora de matemática entra na sala, eles questionam se ela vai passar a lista dos aprovados e dos que estão em exame. Ouvem a explicação do que foi acordado, porém, ainda “tentam vencê-la pelo cansaço”. Depois, fazem a mesma coisa nas disciplinas de Ciências, Sociologia, Educação Física, Artes, História, Língua Portuguesa.

Encontramos estudantes de todos os tipos, nessa fase do ano: os bons, preocupados em não ficar em recuperação; os excelentes, seguros dos resultados positivos; os razoáveis temerosos em reprovar; os irresponsáveis com provas e trabalhos que acreditam na possibilidade de passar direto; e, até aqueles que estão conscientes da pior conseqüência que podem sentir por não terem estudado durante a maior parte do tempo. Temos o grupo dos realizados pessoalmente porque capricharam e a turma que crê que “a esperança é a última que morre”.

Para controlar o estresse normal dessa época, os professores procuram atividades mais descontraídas, como, assistir um filme, organizar um “amigo secreto”, realizar dinâmicas de grupo, passar jogos, etc. Alguns, desenvolvem novos conteúdos ou revisam matéria. Não é fácil manter o entusiasmo diante de tantas coisas acontecendo e “perdoavelmente”, uma aula ou outra é usada “pra jogar conversa fora”.

Certamente, os professores almejam dizer a todos: “Vocês passaram direto.” E, em último caso: “Vocês atingiram a nota mínima que precisavam no provão. Parabéns e Feliz Natal!”

125. Quem nunca na vida parou para olhar uma estrela?


Terminar digitação

Há muito tempo uma junta de bois puxava uma carroça cheia de milho e abóboras. Sobre as espigas transportadas havia uma menina deitada observando o céu escurecer enquanto o sol se retirava maravilhosamente.
A noite fresca lhe oferecia um lindo sono. No entanto, aquela criaturinha estava em serviço, auxiliando o pai que de vez em quando interrompia a canção que assoviava, dizendo: “Filha, desce! Logo ali na frente tem uma descida. Feche o breque senão essa carroça dispara.” Logo em seguida, mudava a ordem: “Abre o breque, menina. O Mancha e o Trovão não tem força para puxar uma carroça com o breque fechado. Tem que aliviar. Presta atenção.”
A proteção de ferro da roda estava escapando e ninguém percebeu. O dono dos bois se deu conta de que era preciso fazer uma pausa para descansar os animais. Pediu então, que fosse
colocada uma pedra como calço.

124. Mulheres cantam

Jornal de Cocal: 2005

Que mulher um dia não teve a sensação de ser um avião sem asa, um circo sem palhaço ou uma Julieta sem um Romeu?

Que mulher já não foi alertada por uma voz carinhosa ou impregnada de ódio: “Tome cuidado porque seu telhado é de vidro!” E apesar de aprender a lição, descobriu que é difícil fechar os olhos e descansar em paz. Seu sono costuma ser perturbado pela consciência que Deus lhe deu e pelos problemas que pediu a Ele.

Que mulher que sentindo falta de uma palavra amiga não buscou consolo nas Palavras da Bíblia? E talvez, tenha ido além semeando palavras ao vento...

Que mulher não sente a vida se repetindo como as estações do ano? São tantos os momentos que marcam o início e o fim das fases coloridas, renovadoras, frias, excitantes...

Quantas mulheres choraram porque não queriam a liberdade? Pensavam que era melhor viver presa às pessoas que a impediam de beijar, sorrir e viver...

Quantas mulheres olharam a cidade ao redor e por nada se interessaram? Fingiram estar calmas, enquanto o coração excedia os limites da velocidade permitida...

Quantas mulheres já insistiram num amor que partiu e nunca mais voltou para tirá-las da solidão? E, sonharam com alguém que as olhasse de coração aberto e ficasse todas as noites? Elas queriam dançar e cantar até o amanhecer. No entanto, uma frase dolorosa as perseguia e quem sabe, as perseguirá eternamente: “Aquele amor que eu senti quando te conheci não tá rolando mais, faz tempo. Cada momento que passamos, juro foi bom, mas tudo que acende, apaga, e o que era doce se acabou.” Infelizmente, tudo acabou com um beijo na testa em sinal de respeito. Mais uma noite chega e com ela a depressão...

Dentre tantas mulheres, há aquelas que, de repente se descobrem culpadas pelo que as torna infelizes: “o beijo que não foi roubado, as jura secreta que não foi feita e as brigas de amor que nunca causaram”. Talvez, tivessem acertado, apenas,“com um certo ar cruel de quem sabe o que quer, tendo tudo planejado para impressionar”. Se bem que as coisas são mais fáceis na televisão e não existe a fórmula do amor que pega de jeito, batendo fundo no peito.

Que mulher já sabe diferenciar o amor do sexo, como a Rita Lee? Amor é livro, sorte, pensamento, novela, prosa, cristão, latifúndio, divino, bossa nova. Sexo é esporte, escolha, cinema, imaginação, poesia, pagão, invasão, animal, carnaval. O amor é mais que o egoísmo da paixão e obsessão.

Toda mulher pode tentar esquecer, mas seu amor sempre será como uma onda que a arrasta para o mar que possui os poderes do encantamento, fazendo-a mergulhar sem pensar e saber se vai voltar.
É por isso que as mulheres cantam, cantam, cantam...

123. Passeio ao Parque Ecológico de Maracajá ( Parte I)

Jornal de Cocal: 2005

Percorremos mais de um quilômetro por dentro da mata sem ver um macaco. O monitor do parque avisou que devíamos andar em silêncio, falar baixinho e evitar fazer qualquer barulho para não espantar os bichos. Respeitamos a regra, porém, o único que apareceu cedo foi o tucano e outros animais indiferentes à presença humana, como, abelhas-mirins, formigas, aranhas e borboletas.

Depois de fazer a trilha junto com o guia, fomos liberados para refazer o mesmo caminho, andando no ritmo e na direção que quiséssemos. Essa liberdade provocou correrias e quebrou o silêncio. Parecia que a mata estava infestada de papagaios!

De repente, um macaquinho curioso nos observava do alto de uma árvore. O Maycon ofereceu salgadinho para tentar aproximá-lo e conseguiu: agarrando-se a um cipó, ele foi descendo devagarinho, pegou a comida e disparou de volta para o lugar onde se sentia em segurança.

Lá estávamos nós, extasiados, rindo com cada movimento do macaquinho e aguardando uma nova aproximação. Um grito rompeu nosso encantamento: o corrimão da trilha suspensa se despregou e a Maíris caiu ao chão. Prestamos socorro, acalmando-a, dando-lhe água e ajudando-a a subir na trilha. Felizmente, não foi além de um grande susto e alguns esfolamentos nas costas e nos braços.

Continuamos nosso passeio. Logo em seguida, o Alan chegou gritando: “Professora, vem ver. Eu sei onde tem sete macacos. Tem um carregando o filhote nas costas! É pra lá, é pra lá!” Sem demora estávamos assistindo um balé no ar. Era uma loucura ver a habilidade que eles têm para pular de um galho para o outro, aparecendo e desaparecendo entre as folhas. A alegria expressa na fisionomia e nos risos da turma era inexplicável.

Vendo toda aquela beleza e pensando que os demais colegas iriam perder a oportunidade, saímos da mata para chamá-los. Tivemos uma surpresa: havia uma invasão de macacos! A festa durou umas duas horas.

Era praticamente impossível cumprir uma das regras do parque que proíbe alimentar os animais. Em todos os lugares tinha uma mãozinha oferecendo bananas, salgadinhos e bolachas. O Moisés cortou uma maça em vários pedaços e a distribuiu. Os macacos não recusavam nada, nada, nada! Um deles apareceu chupando pirulito e outro picolé... Por isso, vamos sugerir aos responsáveis pelo parque ecológico que ao invés de proibir, orientem os visitantes a levar alimentos adequados. O erro cometido é perdoável porque foi provocado por sentimentos nobres. Muitos alunos queriam apenas sentir o prazer de tocar nos animais. Era visível o carinho que demonstravam constantemente dentro de uma sintonia maravilhosa. Todos que ali estavam vivenciaram algo sublime que só compreende quem reconhece suas características comuns com o meio ambiente.

O local é público e adequado para as famílias passarem um domingo preparando um churrasco, conversando, brincando e aprendendo a amar e respeitar os recursos naturais. Ou mesmo, para as escolas organizarem piqueniques culturais que estimulem a consciência ecológica.

122. Passeio ao Parque Ecológico de Maracajá ( Parte I)

Jornal de Cocal: 2005

Maracajá ou jaguatirica é um felídeo que vive em matas e banhados alimentando-se de aves e pequenos mamíferos. É também, o nome de um município onde há um ponto turístico interessante que proporcionou um sábado especial para os alunos das sextas séries do período vespertino da nossa escola: o Parque Ecológico de Maracajá. Os objetivos da professora de Ciências excederam as expectativas!

Todos prepararam um lanche para o almoço e quem tinha máquina fotográfica levou para registrar as belezas da natureza e o prazer de estar entre amigos num lugar diferente.

No ônibus da prefeitura, fizeram a festa, cantando, implicando com as pessoas que andavam pelas ruas ou mesmo, observando os prédios, o bananal da 4a Linha, as curvas da estrada, o trabalho nas obras da duplicação da 101.

Antes do desembarque, cantamos parabéns para o Leonardo que completava quinze anos. Certamente, os momentos que ele curtiu naquele dia tornaram seu aniversário inesquecível.
Quando estávamos chegando foi recolhido um real de cada aluno para pagar a entrada. Os monitores nos receberam, guardamos as mochilas no salão de festas e nos dividimos em dois grupos para fazer a trilha. O grupo se distraiu um pouco durante a apresentação das regras por causa de um macaquinho que derrubou um vaso.

Sentimos segurança ao andar na trilha suspensa a aproximadamente um metro e meio de altura. Percorremos 1100 metros ladeados por samambaias, coqueiros, taquaras grudentas, flores, cipós, etc.
Logo que entramos na mata vimos um tucano pousado sobre o corrimão da trilha. Imaginávamos que fosse um animal arrisco, mas descobrimos que ele aceita ser tocado e gosta de ficar por um longo tempo parado no mesmo lugar. Tivemos a oportunidade de ver de perto as penas coloridas, os olhos verdes, a rapidez com que as pupilas abrem e fecham controlando a entrada de luz, as pernas azuladas e o bico rachado. A Bruna não estava convencida de que o bichinho era inofensivo: ao passar por ele trancou a respiração e se desviou o mais que pôde. Parecia que o coitadinho era uma cobra cascavel pronta para dar o bote. O engraçado é que mais tarde o tucano voou em direção à cabeça dela dando-lhe o maior susto.

O guia nos mostrou algumas árvores interessantes que há no parque. Vimos uma linda árvore conhecida como mata-pau porque suas raízes se enrolam nas outras plantas e com o tempo as sufocam. Um menino lembrou de algo que aprendeu em sala de aula: o cedro é uma das madeiras de lei mais caras. Conhecemos o bugre, com a qual se pode fazer um chá diurético e muita gente diz que serve para emagrecer, porém, uma monitora disse que tomou e não fez efeito algum. No banhado havia milhares da menor angiosperma – grupo de plantas floríferas providas de sementes encerradas no pericarpo - do mundo. Talvez não seja realmente a menor, mas comprovamos que é uma planta pequeníssima.

Havia alguns troncos no meio do caminho que foram colocados pelas mãos do “furacão Catarina”. Inteligentemente, aproveitaram um deles para nos dar uma lição. Escreveram em uma placa: “Curve-se diante da natureza”. O Alexsandro não prestou a atenção devida e acabou dando uma bela cabeçada. Esse fato serve como reflexão, afinal, a destruição do meio ambiente já está gerando dores de cabeça para o mundo.

Atravessamos uma ponte pênsil de uns cinqüenta metros, sobre um açude de forma retangular. Lá do alto observamos uma tartaruga, muitas carpas-capim, gansos e um tateto que é uma espécie de porco do mato.

O espaço se esgotou e ainda não falamos sobre os macacos-prego. Nosso encontro com eles foi fantástico e por isso continuaremos na semana que vem...

121. Pais frágeis. Filhos fortes.

Jornal de Cocal: 2005

Já perceberam como tendemos a acreditar que nossos pais são imortais e que nossos filhos estão freqüentemente sujeitos à morte?

Quando um pai está fazendo um severo tratamento contra algum tipo câncer, os filhos acreditam que ele é invencível e vai superar tudo. Por isso, custam a acreditar que foram derrotados, ao receberem a notícia do falecimento. Somente, após jogarem um punhado de terra sobre o caixão é que percebem que é verdade que eles morrem. Não adianta querer ensinar essa lição; só a entenderá quem já perdeu um deles.

Quando um filho está com febre, os pais sentem o coração apertado, temeroso, desesperado. Não adianta alguém experiente lhes dizer que é normal, que logo vai passar. Só sentem tranqüilidade quando os vêem sorrindo novamente.

Muitos filhos esquecem da mãe idosa e doente que sobrevive graças às diversas caixas de remédios. Não ficam pensando que a qualquer momento podem receber um recado avisando que seu estado de saúde piorou gravemente. Nem imaginam o quando ela espera por um telefonema ou uma visita, principalmente nos dias mais dolorosos.

No entanto, esses mesmos pais, não dormem direito nas noites em que os filhos saem para curti-la. Perdem o sono levantando as piores hipóteses possíveis de coisas ruins que podem lhes acontecer. O medo toma conta da alma, se ao amanhecer, o seu “bebê” não está no quarto dormindo como um anjo. São desgastes emocionais praticamente infundados - que afligem principalmente as mães - porém, poucos conseguem relaxar sabendo que suas preocupações não têm o poder de evitar tragédias e que a probabilidade delas acontecerem é menor do que parece.

Os pais temem que seus filhos morram antes mesmo do nascimento. Durante a gestação, a mulher fica extremamente atenta aos movimentos da criança acolhida em seu ventre. Quando ela diz que o bebê deu muitos chutes na barriga, demonstra tranqüilidade porque têm a certeza de que está vivo. Porém, ao perceber que ele está demorando a movimentar-se, fica ansiosa, pois em seu íntimo teme a morte.

Ontem, enquanto eu escrevia essas palavras, muitos bebês nasceram e muitas pessoas morreram. Hoje, enquanto você descobre o que se passava em meus pensamentos, há bebês vindo a este mundo e pessoas saindo dele. Amanhã, quando esses bebês estiverem na terceira idade, eu e você, existiremos apenas na lembrança de quem está aprendendo a nos amar agora ou assim que for concebido. E não demorará a chegar o tempo em que seremos apenas um nome numa lápide, enquanto ela existir.

Acho que um dos segredos da felicidade está em compreender que, em certas fases da vida, nossos pais são mais frágeis e nossos filhos mais fortes. E, nós, somos um pouco de cada um.
Podemos surpreender enquanto vivermos e as pessoas que esperam por isso... não estão num cemitério.

120. Convocada novamente para mesária

Jornal de Cocal: 2005

Sobre a mesa do escritório Lena encontrou uma convocação da Justiça Eleitoral para auxiliar no referendo que visava saber se os cidadãos desejavam proibir ou não, o comércio de armas e munição no Brasil.

Lamentou-se por não ter solicitado sua dispensa. Esquecera completamente que seria liberada se fizesse o pedido, afinal de contas, já trabalhara em cinco eleições. Após ler o comunicado, comentou com seu chefe: “Agora é tarde para recusar. Não faço parte de nenhuma frente parlamentar, não sou autoridade nem agente policial, não pertenço ao serviço eleitoral, já fiz dezoito anos a um bom tempo, tenho uma saúde de ferro. Sem um motivo justo sou obrigada a comparecer! Melhor trabalhar do que ficar sujeita às sanções previstas nesse bendito Código Eleitoral – detenção de seis meses ou pagamento de 90 a 120 dias-multa. Aproveito para comunicar-lhe que, quarta-feira, terei reunião na Casa da Cidadania e como presidente de mesa não posso faltar.”

O chefe de Lena também não gostou da convocação, pois, sabia que posteriormente teria de lhe conceder dois dias de folga. Aliás, essa é uma das vantagens de ser mesário: a cada hora à disposição da Justiça Eleitoral, dá direito a duas horas de folga no trabalho. É claro, que nem todos, a usufruem devidamente: uns porque são autônomos, outros por exercerem funções essenciais na empresa onde estão empregados ou por serem extremamente comprometidos com sua profissão.

Lena e seus colegas convidaram todos os eleitores jovens, aparentemente solteiros e que transmitiam capacidade em exercer as simples - porém importantes - funções designadas pelo Juiz Eleitoral, para colaborar futuramente na seção onde votam, como responsáveis por aquela urna. Obviamente, não era fácil perceber essas características num contato de poucos segundos. Com certeza, era preciso encontrar alguns solidários e prestativos brasileiros dispostos a ajudar a democracia brasileira, caso contrário, estariam involuntariamente exercendo cargos vitalícios. Tentando convencer o eleitor a aceitar a proposta, o secretário, brincava: “Se você aceitar, terá três vantagens: folgar dois dias no trabalho, a garantia de uma cela especial caso cometa algum crime e ganhará um kit de sobrevivência Tabajara.” Percebia-se de imediato, na reação das pessoas, a resposta que dariam. Apesar das dificuldades, conseguiram seis voluntários...

O dia foi extremamente tranqüilo. Nenhum fiscal credenciado, muitas justificativas preenchidas, alguns eleitores perguntavam se era “pra votar no Lula”, as crianças que acompanhavam os adultos foram autorizadas a vê-los digitando o voto na urna eletrônica e algumas tiveram a oportunidade de teclar o número de um título no microterminal.

Assim que terminou o horário de votação, Lena entregou o envelope plástico que continha o disquete, a zerésima, a ata e as cinco primeiras vias dos boletins de urna, ao Delegado de Prédio.

Ela não demorou a chegar em casa e entregar ao filho um kit contendo uma refeição e um lanche: “Divirta-se com biscoitos recheados, salgados e amanteigados. Tem também batata ondulada, wafer, barras de cereais, torradas integrais, geléia, margarina, achocolatado, suco natural, faca descartável, guardanapo e sacola plástica para coleta do lixo. Duas mil, quatrocentas e setenta e duas calorias! Analisando bem, não é tão Tabajara quanto parece...”

Antes de abrir a caixa, o garoto leu em voz alta, o que estava escrito na tampa: “Mesário, você é essencial para a cidadania. A Justiça Eleitoral agradece sua colaboração!”

119. Teatro de fantoches sobre Meio Ambiente

Jornal de Cocal: 2005

— Oi, gente. Fui convidado para conversar com vocês. Eu sou Ferdinando e está e minha amiga Atchina. Vamos colega, cumprimente a turma. Que foi Atchina?
— Eu estou com vergonha.
— De quem?
— Da professora deles...
— Que boba! Venha. Bem, pessoal, estamos aqui para conversar sobre o meio ambiente, reciclagem, árvores.
— É. Nós queríamos ter vindo aqui no dia 21 de setembro que é o dia da árvore. Porém, tínhamos outros compromissos e não deu tempo.
— Felizmente, chegamos aqui antes de acabar a primavera que é a estação das flores. Já estamos vendo as plantas colorindo o meio ambiente e espalhando seus perfumes pelo ar.
— Ih! Não gostei. Terei problemas com essas flores.
— Flores não são problemas para as pessoas. Que bobagem você está dizendo...
— Sabe o que é? É que eu tenho rinite.
— Ah, mas isso não é tão mau. Quem tem rinite sofre porque até o pólen das flores causa alergia: começa a espirrar, espirrar, espirrar e o nariz fica vermelho, escorre a até caem lágrimas dos olhos.
— A sensação é horrível.
— Mas, logo passa. Não dá nada.
— Não dá nada porque não é contigo. Eu sei o que passo, principalmente, se tiver um ipê florido por perto. Já avisei minha família que no meu velório não quero flor de ipê perto do meu caixão.
— Você sabia que o ipê-roxo é a árvore símbolo do Brasil?
— Não. Eu pensei que a árvore símbolo do Brasil fosse o pau-brasil.
— É por causa dela que nosso país recebeu esse nome. Atchina, há um ninho de bem-te-vi no alto daquela figueira grandona, que tem no pátio da nossa escola.
— Quem disse?
— Eu e a Neura vimos o ninho daqui debaixo. O João, professor de Educação Física, falou que é de bem-te-vi.
— Então eu vou subir na árvore para ver.
— Não pode, é perigoso.
— Mas, o Douglas vai comigo.
— Pior ainda. Se vocês fizerem uma coisa dessas vão levar um xingão da professora e uma chinela do papai.
— Fernandinho, outro dia, eu e a professora Marilac fomos cheirar folhas de ingá.
— Onde é que encontraram um pé-de-ingá?
— Aqui no pátio da escola. Lá perto da sala de professores do CEDUP.
— E o cheiro é bom.
— Parece cheiro de goiaba. É, a gente amassou as folhas e sentimos o aroma. Eu queria saber o nome daquela árvore que tem lá perto do portão. Já perguntei para um monte de gente e ninguém sabe. Acho que se chama Ligustro porque eu vi uma reportagem no Globo Repórter mostrando uma cidade do Rio Grande do Sul que fez uma passeata e escreveram num cartaz: “Ou nós ou os ligustros”. A população daquele lugar é muito alérgica.
— Talvez devêssemos dar a missão de descobrir o nome daquela árvore para a Maria Laura e a Pamela. Prestem atenção, as duas, estamos esperando uma resposta.
— Ah, Fernandinho, tem outra árvore que eu não descobri o nome.
— Qual? Aquelas que tem ali na rua? Aquelas que fazem sombra para os carros dos nossos professores.
— Não. Aquelas a Dona Salete já me disse que se chama jamelão.
— Quem é a Dona Salete.
— É a nossa servente.
— Sei. Escuta, jamelão não é uma árvore que dá um fruto parecido com a azeitona? Dizem que tem muito lá em Pernambuco e que as crianças brincam de comer o fruto até se cansar para ver quem termina com a língua mais tingida de roxo. Porém, aqui em Cocal do Sul eu nunca ouvi falar.
— Eu também não conheço o fruto dessa árvore.Talvez, seja de outra espécie.
— A Dona Salete falou que não deram frutos porque ainda são novinhas e que lá no IMG, perto do Schüller tem uma que fica carregada de frutos.
— Tá, mas então qual é a outra árvore que você quer saber o nome?
— É uma que tem lá fora, no cantinho do muro. Ela é bem alta e está com flores laranjadas.
— Quem sabe não damos a missão de descobrir o nome daquela árvore para outras crianças?
— Isso mesmo! Pedimos, então, a ajuda do Guilherme e da Tainara.
— Por favor, pesquisem pra nós. Conversem com seus pais, com seus avós, com os vizinhos e descubram.
— Eu tenho uma fofoca pra te contar sobre um aluno dessa sala.
— Quem?
— O Renato. Fiquei sabendo que nos mês passado ele jogou uma árvore no lixo.
— O quê? Ele jogou uma árvore no lixo? Como assim?
— É que ele vive arrancando folhas do caderno para rascunho, escreve um pouquinho, amassa e joga no lixo.
— Não, esse menino não fez uma barbaridade dessas. É mentira!
— Também me contaram uma coisa legal sobre a Jamilly. Disseram que ela se preocupa com os 3R’s.
— Do que estás falando?
— Dos 3 R’s que são: reduzir, reutilizar e reciclar.
— Reduzir o quê?
— Reduzir o desperdício.
— Reutilizar o quê?
— Reutilizar tudo o que for possível antes de jogar fora.
— Reciclar o quê?
— Seria melhor dizer, separar para reciclar, pois na verdade quem recicla são as indústrias. Todos os alunos podem colaborar separando o papel na sala de aula.
— É, eu peço para os líderes das salas nos ajudarem. Lembrem seus colegas que devemos colocar os papéis na lixeira certa.
— Precisamos da colaboração de todos os alunos do colégio para separar o lixo seco do molhado. Observem bem! Chega de colocar cascas de bananas misturadas com copos plásticos. Vamos ajudar a natureza.
— Está na hora de irmos embora.
— Antes temos que deixar aquele recado...
— Ah, é! A figueira pediu um abraço dos meninos e um beijo das meninas.
— Você acha que essas crianças vão pagar um mico desses?
— Por que não? Se a figueira dá sombra, alegria e oxigênio de presente, eles podem ser carinhosos com ela.
— Bom, o recado está dado. Foi bom passar esse momento com todos vocês. Um beijo.
— Um beijo. Tchau! Tchau!
OBS: Esse texto foi apresentado em nossa escola usando fantoches dialogando. Se desejarem, façam as devidas adaptações e aproveitem. São de atos pequenos como esse que estamos carentes!

118. Dia do Professor!

Jornal de Cocal: 2005

Você sabe como surgiu a data em que comemoramos o Dia do Professor? Acredito que não. Afinal, poucos dentre nós, os maiores interessados, temos essa informação. Aproveitarei esse momento para apresentar a resposta dessa pergunta que acabei fazendo a mim própria somente depois de atuar uma dezena de anos no magistério.

No dia 15 de outubro de 1827, D. Pedro I baixou um decreto imperial que criou o Ensino Elementar no Brasil. Esse decreto abordava questões sobre a descentralização do ensino, o salário dos professores, as matérias básicas que todos os alunos deveriam aprender e até como os professores deveriam ser contratados. Por causa da importância desta lei, a data começou a ser comemorada - já na década de 30 - e, em 1963, virou data comemorativa através de um decreto.

O governo incentivou os estudantes brasileiros a “inventarem a sua homenagem”. Alguns receberam o recado e fizeram algo para agradecer. Outros, escreveram bilhetes amorosos, atendendo o próprio coração.

O Jornal Nacional está exibindo uma série de reportagens mostrando “avanços ocorridos em alguns países que decidiram priorizar a educação”. É interessante saber como medidas educacionais mudaram a Irlanda, a Espanha, o Chile. No entanto, penso que podiam ter aproveitado essa semana que antecede o dia do professor para falar, por exemplo, dos professores nota 10 – Vencedores do Prêmio Victor Civita de 2005. Esses educadores buscam valorizar a presença dos idosos na comunidade, resgatam antigas radionovelas e fotonovelas, discutem a transposição do Rio São Francisco, escrevem contos de assombração, têm como ideal ensinar a ler o mundo e acreditam na sua missão. Por que não falam das “formiguinhas brasileiras” que organizam campanhas de reciclagem, montam laboratórios de matemática, ensinam yoga, dão aulas de violão, preparam viagens de estudo, planejam mosaicos nos muros, promovem a participação em jogos escolares, exploram a linguagem dos adolescentes? Enfim, está na hora de dar valor as coisas boas do nosso país. Não precisamos lamentar o tempo todo!

Tomo a liberdade de concluir meu texto usando uma mensagem bem-humorada, de autor desconhecido, intitulada O professor está sempre errado!: “Quando...É jovem, não tem experiência. É velho, está superado.Não tem automóvel, é um coitado. Tem automóvel, chora de "barriga cheia". Fala em voz alta, vive gritando. Fala em tom normal, ninguém escuta. Não falta às aulas, é um "Caxias". Precisa faltar, é "turista". Conversa com outros professores, está "malhando" os alunos. Não conversa, é um desligado. Dá muita matéria, não tem dó dos alunos. Dá pouca matéria, não prepara os alunos. Brinca com a turma, é metido a engraçado. Não brinca com a turma, é um chato. Chama à atenção, é um grosso. Não chama à atenção, não sabe se impor. A prova é longa, não dá tempo. A prova é curta, tira as chances dos alunos. Escreve muito, não explica. Explica muito, o caderno não tem nada. Fala corretamente, ninguém entende. Fala a "língua" do aluno, não tem vocabulário. Exige, é rude. Elogia, é debochado. O aluno é reprovado, é perseguição. O aluno é aprovado, "deu mole". É, o professor está sempre errado mas,se você conseguiu ler até aqui, agradeça a ele!”

Certamente continuaremos errando e acertando. E lutando, todos os dias, para que os acertos superem os erros. Merecemos parabéns por isso!

117. Tim, Claro que eu Vivo ligado!

Jornal de Cocal: 2005

Você lembra daquele tempo em que os meninos sonhavam em ter uma bola de futebol de borracha e as meninas queriam ganhar uma boneca que abria e fechava os olhos?

As esperanças de receber o presente tão desejado aumentavam sempre que uma data especial se aproximava. Enquanto, o brinquedo não chegava, o jeito era improvisar.

Os meninos faziam bolas usando meias velhas ou bexigas de porco. O campo era demarcado com um risco no chão e as traves delimitadas por chinelos havaianas. Jogavam descalços, nem sempre num gramado. Na alma de cada garoto se inseria o nome de um famoso jogador. Quem fazia o gol era o Zico e não o “Pedrinho”.

As meninas procuravam suas bonecas no milharal. Era possível escolher uma “filhinha morena, loira ou ruiva”, dependendo da fase em que estavam as espigas. Para enrolá-las, buscavam pedaços de pano rasgados dos velhos lençóis, que as mães guardavam nos bidês. Elas ainda não sabiam que “as roupinhas dos seus bebês” serviam como absorventes higiênicos. Aliás, sequer entendiam que precisavam engravidar para serem mamães, quanto mais, que um dia menstruariam regularmente. O fato é que prazerosamente cumpriam seus papéis dando mamadeira, ninando, trocando as fraldas, ensinando a falar, etc. Também, havia aquelas irresponsáveis que abandonavam seus filhotes no sobrado, preso entre os caibros e as telhas. Coitados, acabariam sendo atacados pelos ratos e esquecidos eternamente.

E, hoje? O que é que os meninos e as meninas sonham em ter? Dentre tantas coisas, podemos afirmar sem erro que a maioria deseja possuir um celular. Detalhe importante: eles querem um celular de verdade. Só os pré-escolares aceitam um “aparelho de mentira”.

Há poucos dias um grupo de crianças falava ao celular em plena sala de aula:

- Oi, onde tu tá?

- Percebi uma chamada sua em meu celular e estou dando retorno.

- Eu ia lhe mandar uma mensagem, mas preferi ligar. Tenho um assunto urgente pra tratar contigo. Posso passar na sua casa mais tarde?

A princípio pode parecer que isso é resultado de falta de disciplina. Na verdade, o que se via era a criatividade superando as dificuldades financeiras e dando asas à imaginação. Os celulares foram fabricados pelos proprietários usando folhas de caderno, cola e caneta colorida. Os modelos variavam desde os mais antigos – os famosos tijolões – até os sofisticados que batem fotos. Um mais interessante que o outro!

Houve uma época em que as crianças e os adolescentes avisavam: “Não esqueça minha Caloi!”. Hoje, quando os adultos insistem em afirmar o contrário, parece que eles estamparam em suas fisionomias: “Tim, é Claro que eu Vivo ligado!”.

116. Coisas gostosas de lembrar

Jornal de Cocal: 2005

Hoje, depois da tradicional soneca de sábado à tarde, preparei um café com um pedaço de bolo de laranja e doce de morango comprado na feira. Enquanto eu saboreava o lanche, entrei no túnel do tempo e revi frações da minha infância. Resolvi ajudar minhas recordações vasculhando momentos em que a comida estava presente.

Meus vizinhos faziam cestas de vime e tinham um pessegal. Na época da colheita era comum nos trazerem cestas de vime cheias de pêssegos maduros. Minha mãe as colocava no quarto, ao lado da penteadeira, por falta de espaço na cozinha. Era uma delícia comer aquela fruta ou os doces preparados com sua polpa.

Muitas vezes, após o almoço, meu irmão pegava uma lata de tinta vazia e uma vara com um prego na ponta. Enquanto meu pai descansava ouvindo o programa dos “irmãos Casagrande” e minha mãe lavava as louças na pia de madeira afixada na janela, nós íamos buscar bergamotas – ou vergamotas, como queira - nas redondezas. Era divertido desafiar os espinhos das bergamoteiras procurando as frutas mais doces e maiores!

À beira do caminho da escola havia moranguinhos silvestres, uma cerejeira, um butiazeiro e um pé de ariticum. Pena que a demanda era maior que a oferta!

Naqueles tempos quase todas as famílias tinham um jogo de cinco latas de tamanhos diferentes sobre a pia. Todos os netos sabiam que na casa das vovós, no mínimo, duas delas, estavam cheias de bolachas. Quando as visitamos e a fome batia, por questão de orientação dos pais não pedíamos comida: “É falta de educação pedir comida na casa dos outros. É feio! Se eu descobrir que você me fez passar vergonha, a cinta pega.” Então, ficávamos ansiosamente aguardando o momento em que uma das latas seria aberta e um prato fosse oferecido.

Antigamente, o lanche era preparado pela professora com ajuda das alunas. Na cozinha da escola havia pacotes de merenda com massa, achocolatado, charque, feijão e almôndegas enlatadas. Certa vez, um grupo de meninos foi castigado por entrar escondido pela janela e cometido a infração de comer colheradas de leite em pó. Era gostoso roubar umas colheradas de leite em pó.

Nem sempre havia alguma “mistura” – como salame ou queijo – ou algum tipo de “chimia”. Uma das alternativas para não se comer “pão suzinho” era espalhar açúcar sobre a fatia e respingar gotas de água ou uns grãos de alho fritos na banha.

Farinha de milho nunca faltava. Também pudera, quase todo dia se fazia polenta com leite para o jantar. Minha mãe costumava torrar fubá, acrescentar açúcar, colocar numa xícara e nos dar aquela paçoca. Era uma briga para ganhar mais.

Uma experiência prazerosa que tive foi sentir pedras de gelo se derretendo em minhas mãos e na boca. Acho que eu era como o homem pré-histórico descobrindo o fogo. Quando a geladeira passou a compor os móveis de minha casa, tocava no rádio uma música boba que dizia: “Mas, tu tá comendo vrido, menino? Não pai, tô chupando é preda d’água!” Nos divertíamos cantando junto.

Cresci ouvindo as pessoas mais velhas dizerem que desperdiçar comida é pecado. Fico triste quando vejo metade de um pão no lixo e lamento mais ainda quando tenho a certeza de que foi jogado por uma criança pobre. Talvez, elas precisem conhecer um pouco mais sobre as dificuldades que se tem pra garantir a comida na mesa todos os dias. Nós, adultos, estamos pecando porque as ações das crianças refletem nossos ensinamentos.

115. A excêntrica família de Antonia

Jornal de Cocal

Não faz muito tempo que o assunto do dia era sobre um caso de necrofilia – atração sexual mórbida por cadáveres - ocorrido em nossa região. Pelos comentários, percebia-se indignação, revolta, perplexidade, análises superficiais, incoerência e até a insensibilidade humana:

- Eu não me conformo em saber que há gente capaz de fazer coisas tão horríveis.

- Um cara desses tem que ser castrado e jogado numa fossa de merda.

- Estou apavorada! Nem quando morremos temos paz. O que é isso, meu Deus? Onde vamos parar? Esse mundo está virado mesmo. Cada dia fica pior!

- Sabiam que isso é uma patologia? Há vários tipos de desvios sexuais. Freud explica...

- Que nada! O falecido estava com saudade.

- Vai ver que era alguém querendo “uma mais apertadinha” e além do mais, dizem que ela era muito bonita.

- Ou desejando novas aventuras amorosas, algo diferente.

- Como vocês têm coragem de fazer humor-negro numa situação dessas? Que falta de sensibilidade! Isso não é um filme de terror, fantasia. Há pessoas sofrendo duplamente.

- Hoje em dia, não há lugar no mundo protegido das maldades. Não adianta buscar refúgio em cidades pequenas pensando que elas ainda reservam tranqüilidade, harmonia e respeito entre as pessoas. Quem diria que num lugar pacato aconteceria algo tão tenebroso! Isso tudo me faz lembrar do filme:“A excêntrica família de Antonia”.

O título provocou minha curiosidade. Uma de minhas amigas, que planeja organizar um “sebo de filmes”, emprestou-me o vídeo. A história contra a trajetória de Antonia, que volta à sua terra natal para o enterro da mãe. Ela resolve então ficar na cidade, trabalhando na fazenda pertencente à família. Começa uma nova vida ao lado da filha e, depois, da neta e da bisneta.

A família de Antonia realmente é excêntrica – original, extravagante, esdrúxula, esquisita. Porém, seus vizinhos também são. Num lugar onde todos se conhecem e sabem de muita coisa sobre a vida alheia, não faltam fofocas, críticas, segredos, intrigas, lições de generosidade e solidariedade.

O homem que mora numa pequena comunidade é capaz de fazer as mesmas coisas que o homem que mora numa metrópole. Ambos vivenciam energias ruins e boas praticadas por seus semelhantes.

Infelizmente, regredimos ainda mais, na maneira como as notícias são divulgadas. Antigamente, os fatos macabros ou considerados vergonhosos eram sussurrados de boca em boca. Hoje, a mídia explora o sensacionalismo visando audiência e brincando com os sentimentos das verdadeiras vítimas.
O mundo que nos acolhe revela segredos a todo momento. É uma pena que não seja de uma maneira inteligente.

114. Desejando voltar para casa

Jornal de Cocal: 2005

Há dias que estamos no trabalho desejando ardentemente voltar para casa. Perdemos a conta das vezes que olhamos para o relógio, mesmo sabendo, que essa insistência tem o poder de barrar a passagem do tempo.

Nem sempre sabemos explicar quais são os sentimentos que nos desconcentram de nossas obrigações. Raramente, são os mesmos...

Retrocedendo, podemos lembrar de várias situações em que desejamos virar às contas aos nossos compromissos. No entanto, com equilíbrio e bom senso, cumprimos as tarefas inquietantemente até o fim.

Lembramos daquele dia chuvoso que trouxe a monotonia para nossa alma. Os pés estavam gelados por causa das meias molhadas que não podiam ser trocadas naquele instante. A água que escorria pela vidraça convidava a ver um filme, em nosso quarto, aquecidos pelos nossos cobertores. Como seria bom deitar em nossa cama e relaxar ouvindo o barulhinho da chuva!

Quem de nós já não teve que voltar a lutar pela vida depois de ter se despedido eternamente de uma pessoa querida? E, pensando em se isolar num canto qualquer, tendo que buscar forças para evitar que os alheios à nossa história não notassem as lágrimas, assim como o aperto no coração. Afinal de contas, nossos problemas não são dos outros! A lei dos homens modernos é enfática ao exigir que problemas pessoais e profissionais devem ser separados.

Houve aquele dia em que aguardávamos o telefonema de alguém especial. Era uma vida nova surgindo em nossa vida. A ansiedade se misturava com a alegria de novas conquistas. Não adiantava chegar cedo porque o horário marcado não poderia ser antecipado. O espaço onde estávamos nos aprisionava, aumentando o desejo de fugir para casa.

Uma notícia ruim pede o conforto do lar. Ao ficarmos sabendo, por exemplo, que uma doença grave acomete uma pessoa amada, queremos enterrar nosso rosto num travesseiro e chorar para acomodar a dor que nos afeta. E, onde é que está o nosso travesseiro?

De vez em quando afugentamos nossa paz com uma briga familiar. Dormimos mal, saímos para a rua sofrendo com o conflito e sentimos o corpo doendo por causa da alma ferida. Queremos estar perto de quem nos magoou ou de quem magoamos. Só assim, teremos a chance de usar o remédio da reconciliação que aliviará a dor das intrigas. E, qual é melhor local para “se lavar as roupas sujas”?

Enfim, é gostoso chegar em casa, abrir as portas, colocar um chinelo, preparar um chá de camomila, acender um incenso, dar um beijo, espalhar talco no colchão, ler algumas páginas do livro de cabeceira, assistir um capítulo de novela, brincar com o cachorro, passar um óleo pelo corpo, conversar, ouvir, dormir.

Há coisas que só acontecem quando voltamos para casa. Só nos resta, então, pedir a Deus que nossa presença seja harmoniosa e importante, sempre.

113. Não sou flor que se cheire

Jornal de Cocal: 2005

Os passageiros do ônibus viajavam tranqüilamente. O sol brilhava depois de passar um bom tempo escondido. O tráfego fluía maravilhosamente. A temperatura estava agradável. O filme escolhido para passar no vídeo descontraía quem não se importava em ver novamente “Debi & Lóide”. A paisagem relaxava a alma de quem se deixasse por ela envolver.

Tudo transcorria normalmente até que numa das rodoviárias, embarcou uma senhora acompanhada de seu cachorrinho. Certamente, alguém já supôs que o sossego do ambiente acabou por causa dos latidos do pequeno animal. Antecipo-me dizendo que não façam julgamentos precipitados. O ser humano é capaz de ser mais inconveniente do que os óxiurus.

À princípio, as conversas daquela mulher com uma vizinha de poltrona, apenas chamou a atenção das pessoas que “sentavam-se nas redondezas”. As perguntas que se faziam davam a entender que estavam se conhecendo: “Onde você mora? É sua filha? Para onde você vai?”.

De repente, o ouvido de algumas vítimas é alugado: “Me casei tarde a ainda me dei mal. Não ganhei nada com o casamento. Não posso dizer sequer que a minha filha foi uma conseqüência positiva, porque a tive ainda solteira. Graças a Deus tenho a Mariana que é uma ótima companheira. Não deu certo porque ele queria mandar em mim. Trabalho desde os doze anos e nunca vivi nas costas de ninguém. Sempre fui independente. Não há nada melhor no mundo do que chegar ao final do mês e poder comprar as coisas com o dinheirinho que é da gente. Já passei muito tempo só cuidando da casa. Trabalho fora porque gosto e não porque preciso. Outro dia, minha comadre disse que eu não parava em emprego nenhum. Me deu uma raiva! Justo ela que só come e dorme. O coitado do marido é que batalha de sol a sol. Não me meto na vida dos outros. Por isso, não admito que venham se intrometer na minha vida. Tá, e essa menina é sua filha?” A outra senhora contou que a garota era neta de sua irmã. Então, a incontrolável faladeira recomeçou: “Ela é bonita, parece uma boneca! Não vejo a hora de chegar em casa, cortar a grama, lavar os cobertores. Quem sabe a chuva não volte tão logo. Não dá pra agüentar o mofo. Sai de casa preocupada. Não confio nos vizinhos. Quando Mariana era pequena, estava no quarto se vestindo e reclamou que o menino da casa ao lado a observava. Fui ver, pensando que fosse um menino da idade dela. Pois, não é que era um dos rapazes! Ah, mas sai pra rua e chamei pra briga. Disse tudo o que eu tinha direito. O que é isso? Ele não veio porque sabe que não sou flor que se cheire. Não faço nada para os outros, mas não pisem no meu calo”. A outra senhora tentou falar alguma coisa, mas imediatamente foi interrompida: “Eu sou muito boa. Sempre fui certa nas minhas coisas. Uma vez eu estava doente, de cama. Pedi pra minha filha ir à padaria; ela respondeu que não ia. Peguei o chinelo e foi pra já que a bichinha tomou rumo. Foi chorando, mas foi! A dona da padaria viu que ela chorava e insinuou que eu ou meu marido tivéssemos batido na menina. Mariana chegou e me contou. Mesmo doente, coloquei uma roupa e sem demora, eu estava na venda. Eu não ia esperar outra hora, senão perde a graça. Logo que entrei, a mulher ficou pálida. Ela sabe que não sou flor que se cheire! Fui educada. Me aproximei, coloque minha mão sobre a dela e mudei o tom de voz. E disse: escuta aqui, eu me meto na sua vida? Você bem sabe que não batemos na Mariana. Cuide da sua família que eu cuido da minha. E nisso o marido dela desceu querendo dar uma de macho. Falei uma verdades pra ele também. Não, não podemos deixar barato. Teve uma vez que a professora da Mariana pisou na bola e eu tirei ela da escola, ela era efetiva e tudo. Eu liguei pra...”

Por sorte, a viagem terminava. Percebia-se um ar de irritação das pessoas que foram obrigadas a ouvir os assuntos daquela insuportável senhora. Nenhum passageiro quis bater de frente com a mulher que “não era flor que se cheire”. Talvez, porque a maioria realmente sabe o que significa “não se meter na vida dos outros”.

112. Existo, logo insisto

Jornal de Cocal: 2005

Penso, logo existo. Penso, logo insisto. Existo, logo insisto.

“Penso, logo existo”, disse Descartes imortalizando três palavras que tentamos entender nos momentos que nos colocamos como seres racionais buscando compreender os mistérios da existência. A capacidade de pensar é apenas mais uma prova de que fazemos parte desse mundo, mas não é essencial. A árvore plantada num canteiro de praça, as nuvens esquecidas no céu, a tinta que escorre pela parede, as bombas nucleares, o copo plástico com insignificante vida útil e os tecidos de algodão, não pensam e no entanto, existem. E, passados os tempos, células que fizeram parte de nosso corpo estarão formando árvores, nuvens, tintas, bombas, copos e tecidos. A química prova que isso é verdade. E essa verdade nos assusta!

“Penso, logo insisto” foi um trocadilho escrito numa capa de revista que alguém recortou e colou em seu caderno de poemas. Esse alguém era mais um adolescente que tentava fazer valer suas opiniões, seus desejos, seus sonhos, sua maneira de perceber o mundo. Infelizmente, lutava mais com a insistência fundamentada na teimosia do que na argumentação. Felizmente, a maturidade lhe deu a certeza de que argumentar não muda nada, o que dá resultado é teimar com todas as forças que tiver dentro de si.

“Existo, logo insisto” não se deve a uma boca sábia conhecida em todas as universidades. Existe quem insiste em viver. Quem não segue essa regra já colocou uma corda no pescoço, um revólver na cabeça, gotas de veneno na água ou mergulhou fundo em águas salgadas. Quem se atirou, puxou o gatilho, tomou a água ou ficou no fundo do mar, não teve sequer a chance de se arrepender. Lamentavelmente, essas pessoas não existem mais porque desistiram.

Existir é acordar, tomar banho, comer, beber água, pentear os cabelos, assistir novelas, sonhar e dormir.

E o que é insistir? Lavar a louça sabendo que no dia seguinte a pia estará repleta novamente? Tirar o pó dos quadros todos os finais de semana? Pagar as contas todos os meses? Marcar nova consulta e tomar outros remédios? É trabalhar com amor, apesar das decepções? Insistir é ler livros de autores diversos visando novos horizontes intelectuais? Planejar a chegada de outro herdeiro? Votar no candidato que se confia desconfiando? Pegar o jornal na esperança de encontrar uma boa notícia? Seguir adiante sabendo que não somos eternos e que a qualquer momento seremos obrigados a parar de insistir?

Não dá para enfrentar os percalços da vida, sem insistir todos os dias.

Graças a Deus, nem sempre insistir é algo ruim, doloroso ou triste. Insistir traz felicidade, harmonia e vitórias.

Resumindo: “Insisto, logo existo.”

111. Professora, me leva para as Olimpíadas de Matemática!

Jornal de Cocal: 2005

Em maio deste ano, assim que entrei na sala de aula e soltei meu material sobre a mesa, ouvi um pedido inesperado do Maiquinho: “Professora, me leva para as Olimpíadas de Matemática!” Imediatamente, respondi: “Não vamos até às Olimpíadas: elas é que virão até nós. Já fizemos a inscrição. Nossa escola participará, sim.”

Associamos a palavra olimpíada aos jogos que acontecem de quatro em quatro anos, originariamente efetuados na cidade de Olímpia - na Grécia antiga – e que, depois de um longo tempo esquecidos, foram retomados em 1896. A relação com o esporte é tão evidente que freqüentemente se ouvia a seguinte pergunta: “Quando é que vai acontecer a Maratona de Matemática?”. Vamos abrir outro parêntese para falar sobre o sentido de maratona: corrida pedestre de cerca de 42 km - distância de Maratona a Atenas. Segundo o dicionário, pode significar também, uma competição esportiva, lúdica ou intelectual. Talvez, fosse mais adequado chamar a Olimpíada de Matemática de Maratona de Matemática. Aliás, as maratonas acontecem todos os anos, assim como as Olimpíadas de Matemática.
Expliquei às turmas que a organização dessas olimpíadas é diferentes dos jogos olímpicos que conhecemos através da televisão e dos jornais.

As provas não são realizadas diante de uma torcida numa cidade escolhida e para onde se deslocam várias equipes. O local da competição é na própria escola.

Na verdade, os testes são individuais e tradicionais - vinte questões com cinco alternativas cada uma. As habilidades avaliadas são teóricas e não físicas.

Os alunos que se destacarem nas provas poderão receber medalhas de ouro, prata ou bronze. Alguns ganharão bolsas de estudo.

Essa participação gerou expectativas e experiências interessantes. No dia da prova, havia alunos dizendo que estavam ansiosos para fazê-la, outros sentiam uma “dorzinha de barriga” e não faltaram os “indiferentes que chutaram resultados porque não valia nota para o boletim”.

Depois, revendo e corrigindo as questões, percebemos como muitas crianças vibravam ao descobrir que acertaram determinados problemas. Os comentários mostravam a repercussão: “Eu falei com minha mãe sobre o problema do tanque de gasolina do carro. Era fácil, eu não podia ter errado.” Outros riam por terem se atrapalhado: “E aquele da régua? Caí direitinho.” E havia observações que nos davam a certeza de estarmos no caminho certo, enquanto educadores: “Eu entendi aquela questão das peças porque era igual aquela que a professora ensinou pra nós com o material dourado.”
E, antes de divulgar os resultados, quando souberam que a lista dos classificados estava pronta, não faltaram tentativas pra conhecer antecipadamente o nome dos que nela constavam: “Diz pelo menos se alguém da nossa sala passou. Por favor, professora!”

Olhando às folhas amarelas – prova do nível I - e rosas – prova do nível II – me perguntei: “Quais são as possibilidades de alguém acertar todas as vinte questões que nelas constam, apenas chutando uma das cinco alternativas?” Peguei uma calculadora simples e não consegui porque o resultado ultrapassava os oito dígitos que podem aparecem em seu visor. Troquei-a por uma científica e também não deu um valor preciso porque esta podia apresentar somente doze dígitos. Finalmente, tive que usar a calculadora do meu computador, que aceita até trinta e dois dígitos e assim, consegui a resposta: uma chance em noventa e cinco trilhões, trezentos e sessenta e sete bilhões, quatrocentos e trinta e um milhões, seiscentos e quarenta mil e seiscentos e vinte e cinco possibilidades. Parece impossível? Graças aos conhecimentos matemáticos podemos provar que não é. E, inclusive, tivemos a certeza de que para se sair bem em uma prova é necessário ter mais conhecimento do que sorte.

110. Gotham City e Brasília

Jornal de Cocal: 17 de agosto de 2005

João pensou em comprar uma parabólica para sair da mesmice das “novelas sem pé nem cabeça” que via diariamente. Desistiu porque era complicado instalar um objeto tão grande no alto de um prédio que não lhe pertencia. Já pensava em mudar para um apartamento mais barato assim que vencesse o prazo do contrato de aluguel. Analisou outra alternativa: “TV a cabo? A antena é pequena, mas a mensalidade não”. Além do mais, o custo-benefício não compensaria tanto. Ele vivia sozinho. Investiria somente se tivesse mais pessoas para aproveitar.

Após tomar banho percebeu que havia uma mensagem em seu celular: “Vamos ao cinema? Hoje está passando o novo filme do Batman. Quero ver para matar as saudades do famoso herói de nossa época. Beto.” Como era quarta-feira, dia da semana em que se paga a metade do ingresso – e os seus ouvidos não suportavam mais os noticiários falando sobre deputados, malas, gravação, dinheiro, corrupção - João retornou a ligação confirmando o programa com o amigo.

João e Beto se encontraram na entrada do shopping. Comentaram que iam voltar ao tempo de criança quando se encantavam com a batcaverna, imaginavam que dirigiam o batmóvel e se vestiam como o homem morcego participando da luta do bem contra o mal.

As primeiras cenas do filme mostravam um menino apavorado, preso num buraco profundo, sendo atacado por dezenas de morcegos. Por influência dos fatos que tomaram conta da vida dos brasileiros depois das denúncias de Roberto Jéferson, foi inevitável que João se comparasse ao garoto: um homem que acidentalmente caiu num país que não é sério, arremessado num mar de lama e sem forças para se defender dos demônios que se dizem políticos que lutam pela justiça.

Repentinamente, ele percebeu que estava sentado naquela poltrona porque desejava relaxar e esquecer do mundo por alguns minutos. Devia se concentrar na história. Porém, foi em vão. Gotham City também era uma cidade manchada pela corrupção. O silêncio foi quebrado pela voz do amigo:

- Isto está parecendo Brasília.

- Pelo menos eles têm o Batman! E, nós? Quem está do nosso lado? Quem pode nos salvar dessa enrascada? Quem vai combater o mal e restabelecer a paz? Eu e você somos impotentes diante das forças do mal. E não venham me dizer que nosso poder está no voto.

O filme acabou deixando no ar que Charada estava aprontando mais uma...A única coisa que se tinha certeza é de que por certo tempo a paz reinaria. Pelos menos, em Gotham City havia trégua.

Ao colocar a cabeça no travesseiro, João se deu conta de que refletindo sobre as ações dos corruptos de Brasília e de Gotham, não percebera que Robin não estava no filme. Haveria uma explicação? Provavelmente, Robin cansou de combater os inimigos e viu que essa luta era infrutífera. Devia ter se decepcionado demais vendo o mal retornar sempre. E, João concluiu : “Até o Batman está sozinho!”

109. A mesma história de sempre

Jornal de Cocal: 2005

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei 9394/96 - prevê que os alunos deverão estar participando do processo educativo formal, ou seja, recebendo o conhecimento idealizado pela escola, por no mínimo duzentos dias e oitocentas horas durante o ano letivo, excluídos o tempo reservado para os exames finais.

Alguns professores terão durante o ano trinta e três horas, outros o dobro, outros o triplo, outros o quádruplo e até o quíntuplo desse tempo para colocar em pauta o conteúdo das suas respectivas disciplinas, projetos, temas transversais e avaliar o desempenho dos alunos. É um trabalho de planejamento, revisão e ajustes que exige muito dos profissionais. O compromisso de fazer o melhor gera preocupações positivas e esforços pouco reconhecidos.

O aluno perderá a chance de ser aprovado se faltar mais do que cinqüenta dias sem justificar o motivo de sua ausência. A freqüência é fundamental para o ensino e lei sabiamente cobra isso.
Não faz muito tempo que garantir a média sete era uma questão de honra e reprovar era humilhante. Tirar nota máxima dava uma sensação de sucesso inexplicável. Hoje, sabemos que a nota representa muito pouco em termos de garantia de um futuro melhor, no entanto, esse recurso não deixou de ser um parâmetro para que os pais verifiquem como “seus filhos estão na escola”.

Uma diretora contou que sua filha era uma excelente aluna: nos boletins nunca apareciam notas inferiores a oito e os elogios que recebia a fizeram acreditar que tinha elevado potencial para enfrentar os desafios que naturalmente surgiram no mercado de trabalho. Porém, assim que se formou e começou a fazer testes de classificação para vagas de trabalho e a prestar concursos públicos. percebeu suas limitações. Certa noite, decepcionada, com lágrimas correndo pelo rosto, questionou: “Mãe, porque a escola me enganou? Porque vocês me fizeram acreditar que eu era boa? Não deviam ter mentido pra mim. Eu fui enganada pela escola. Me iludiram demais. Por que, mãe? Por que não me disseram a verdade?” Ela, como mãe e educadora, não conseguiu dar uma resposta satisfatória, embora sentisse que havia acertado mais do que errado.

A sensação que temos é a de que não damos conta de atender às tantas exigências. Precisamos ler mais, trocar idéias e experiências com colegas de trabalho, dar atenção individualizada aos alunos, fazer cursos, acompanhar os noticiários, saber usar as novas tecnologias, cuidar da família e de nós mesmos. É o mesmo discurso de sempre que na medida do possível tem sido posto em prática.

Não estamos reclamando, só pedimos que respeitem as nossas limitações profissionais e pessoais. Temos uma missão, porém, não somos super-heróis com poderes fantásticos. Temos algumas armas para serem usadas em prol do bem, mas não estamos aqui para salvarmos o mundo.

Vamos parar com essa velha história mal amarrada – como a seqüência desse texto - que parece não ter começo, meio e fim. No entanto, continuaremos a acreditar que um dia ela poderá ser concluída de uma maneira brilhante.

108. Neiva e o tempo

Jornal de Cocal: 3 de agosto de 2005

Neiva adorava usar batons coloridos no inverno, fumar durante os intervalos das aulas e rir das situações em que a vida a colocava. Ela era chamada de “A General”, no colégio onde foi diretora por muitos anos. Poucos sabiam que aquela mulher de físico masculino, comportamento áspero e olhar determinado, era um “doce de pessoa”.

Conhecê-la melhor, foi um presente que ganhei, sem imaginar que um dia pudesse aproveitar. Ouvir suas histórias era divertido. Vê-la filosofando era intrigante. Receber seus estímulos era energizante. Buscar seus conselhos era aconchegante. Certamente, ela não faz idéia de que hoje está sendo lembrada por alguém! E, muito menos, que o motivo dessas recordações são coisas simples, mas profundas que um dia, brincando de pensar, expressou livremente.

Neiva dizia não se conformar em ter que almoçar, colocar a louça sobre a pia, escovar os dentes e voltar depressa para o trabalho. Ela achava que as leis da natureza tinham de ser respeitadas, afinal, todas as pessoas sentem sono quando estão com o estômago cheio. Tirar uma sesta era um direito! No entanto, nem ela podia gozar deste prazer. As exigências da sociedade são mais poderosas que qualquer necessidade fisiológica.

Neiva ria saudosamente quando falava sobre a filha que estudava e trabalhava de babá para um casal de médicos, na Alemanha. Era engraçado observar as contradições que fazia: ao mesmo tempo em que criticava a falta de amor, atenção e carinho dos pais alemães para com o bebê – que soubera pelos relatos de Luana, sua filha – afirmava que estavam certos. É claro que lendo nas entrelinhas, percebemos que há ironias que favorecem o bom senso.

Ela contava que quando tinha os três filhos ainda pequenos, ficou viúva e teve que dar um jeito de criá-los praticamente sozinha. Num domingo, quando estava no sítio de sua mãe, surpreendeu-se observando uma galinha com uma ninhada de pintinhos. Comparou as diferenças entre suas crianças e aqueles animaizinhos: os seus choravam em seus braços quando sentiam dor e os da galinha só piavam sem que esta se preocupasse; os seus exigiam a mamadeira pronta e os da galinha procuravam minhocas ciscando pelo terreiro; os seus sujavam fraldas e os da galinha estavam sempre limpos; os seus não a deixavam descansar tranqüilamente e os da galinha não a incomodavam, apenas se aquietavam em suas penas. Apesar de não serem apropriadas essas análises, ela, tinha puramente a intenção de contestar as coisas que não lhe agradavam.

Há dias que acordamos de uma noite mal dormida brigando com todas as células do nosso corpo, lembramos da Neiva e nos perguntamos: “Por que não podemos ficar nessa cama durante o tempo que quisermos?” E a resposta, vem: “Porque vocês jamais mandarão no tempo.” Então, nos damos conta de que a opção pelo sucesso requer respeito por todos os tipos de tempo. Infelizmente, essa é uma das verdades mais complicadas que se plantou sobre a terra.

107. 7h02min

Digitar

106. Quanto você cobra para rezar por mim?

Jornal de Cocal: 2005

Marina voltava da aula de aeróbica quando foi abordada por um menino bem vestido, que educadamente se aproximou perguntando: “Moça, posso lhe oferecer uma revista?” Ela aceitou e seguiu folheando as poucas páginas que mais tarde tentaram lhe mostrar que “ela é filha de Deus e que poderia conhecer melhor as palavras da verdade que iriam iluminar a sua vida e de toda a sua família”.

Havia também um panfleto divulgando uma palestra sobre o poder da mente. Ela conhecia o local do evento, não tinha compromisso para a data e estava interessadíssima pelo tema. Porém, desconhecia a organização responsável e não pretendia ir sozinha. Durante a semana, pesou os prós e contra e mesmo assim, só tomou a decisão poucos minutos antes de acabar o programa do Didi. Sem demora, desligou a televisão, trocou de roupa, procurou passes de transporte, escreveu um bilhete e colocou algum dinheiro na carteira porque poderia sentir fome durante a tarde.

Enquanto aguardava a sinaleira abrir, Marina pensou: “Será que vale à pena? Não seria mais sensato ficar em casa descansando? Realmente, minha mãe tem razão quando diz que sou mais curiosa agora do que quando eu era criança. Se bem que hoje, busco entender mais os mistérios da alma do que os da natureza. Se eu não for, me conheço, ficarei me cobrando! Enfim, vamos ver o que esse dia me reserva.”

Marina sentou-se na segunda fileira de cadeiras. Olhou para os lados, ninguém familiar. Consultou o relógio, já passava da hora marcada para a abertura. Guardou o recibo de pagamento da inscrição na bolsa - aliás, ela não imaginava que teria que pagar para assistir aquela palestra, pois não constava nenhum “valor de investimento” no panfleto de divulgação. Observou o maravilhoso arranjo de flores silvestres sobre a mesa, enquanto um senhor se preparava para iniciar o protocolo. Respirou tranqüilamente e se ajeitou na poltrona, relaxando o corpo um tanto tenso pelas expectativas que havia criado.

Os assuntos abordados se referiam à harmonia no lar, à importância de se acreditar nas próprias capacidades, aos agradecimentos que não podem ser esquecidos, ao sucesso como resultado de muito trabalho e de aplicação de idéias novas. As abordagens dadas pelos membros daquele “movimento filosófico com fundo religioso” – é assim que se denominam - não continham o que Marina esperava. “Talvez - concluiu ela – eu tenha me precipitado pensando que esse encontro fosse mais espiritualizado”.

Durante o intervalo, Marina teve uma surpresa desagradável. Quando se dirigia ao banheiro, viu duas mulheres anotando o nome de pessoas que quisessem receber orações. Uma delas lhe mostrou uma relação numerada de pedidos: emprego, casamento feliz, saúde, concepção, negócios, etc. Marina deu seu nome, sua idade e disse o que desejava que as forças divinas a ajudassem a concretizar. Quando ia agradecer, descobriu que o seu pedido de número onze custava dois reais. É inexplicável a decepção que ela sentiu repentinamente, pois na sua concepção é inadmissível cobrar por uma oração. Não havia fé capaz de aceitar o que presenciou naquela hora. Ela foi sincera: “Tem que pagar? Quanto vocês cobram para rezar por mim? A senhora me desculpe, mas esse papel não tem mais valor, pode rasgar e jogar no lixo. Acabo de receber um balde de água fria na cabeça.” Uma outra senhora, tentou justificar: “Minha querida, você vai receber cinco orações por dia.” Aquela frase foi a gota d’água: Marina não esperou a segunda parte da palestra.

No caminho de volta pra casa, ainda perplexa com o que lhe acontecera, lembrou-se da época em que a igreja católica vendia um “lugar no céu” e de uma vizinha que freqüentemente doava sangue para o sogro e insinuava que ele devia lhe pagar por isso.

Os dois reais que poderiam ir parar na caixinha do “movimento filosófico com fundo religioso”, acabaram nas mãos de um malabarista que ganha a vida exibindo suas habilidades nas sinaleiras de Criciúma. E, provavelmente, Deus viu isso...

105. Handicapes

Jornal de Cocal: 2005

Folheando uma apostila sobre Educação Especial nos deparamos com um neologismo interessante: handicapes. Recorremos a um dicionário de Língua Portuguesa e encontramos: “prova a que são admitidos cavalos de todas as classes, igualando-se as possibilidades de vitória pela diferença de peso” e “desvantagem”. Não satisfeitos, resolvemos verificar sua tradução num dicionário usado por estudantes brasileiros nas aulas de língua inglesa – nos parecia ser óbvio que essa palavra tinha essa origem – e encontramos: “deficiência física ou mental” e mais uma vez “desvantagem”. Para entender esse termo o dicionário de tradução foi mais útil que o de sinônimos.

Em virtude de tantas falhas humanas e tendo tanto por fazer em busca de uma vida mais digna, surgem grupos de pessoas que se identificam por terem em comum, problemas, objetivos e determinação para concretizar seus sonhos solidários. Uns lutam para salvar as florestas, outros pelos animais e há àqueles que se preocupam com os seres humanos marginalizados, doentes, drogados, portadores de necessidades especiais. No final das contas, todos ajudam a todos e em tudo!

Uma palavra que tem estado em voga nas revistas de educação, seminários e propagandas do governo, é inserção. Inserir... inserir... inserir e inserir. É tão fácil falar, mas tão complicado inserir! Pois essa ação representa mais do que colocar as crianças, ou mesmo os adultos, no lugar de devem estar e permanecer. É preciso dar condições para que sejam bem recebidas, principalmente, as portadoras de necessidades especiais, ou seja, aquelas com algum grau de deficiência física ou mental.

A mídia tem mostrado com freqüência propagandas que chegam a ser enganosas, mostrando que as escolas estão sendo preparadas para a receber alunos com necessidades especiais no ensino regular. A maioria dos educadores sabe dessas mudanças pela divulgação que se está fazendo e não porque foi preparada para enfrentar esses novos desafios. Há uma certeza entre os professores: “Não sei o que farei quando encontrar em uma sala de aula um aluno com uma dessas tantas deficiências que apresentam. Já acho difícil lidar com os normais. E, cadê o espaço físico adaptado?”.

Muitos pais têm dificuldade para enfrentar as limitações dos filhos e querem que a escola os coloque nas mesmas condições dos demais. Não é fácil lidar com as angústias que as famílias sentem diante de um quadro desconhecido que se pretende moldar, iluminar e exibir como algo rico e cheio de potencialidades. É importante vencer o preconceito, e para tanto, tem que haver mais investimentos em pesquisas científicas e trocas de experiências. Não dá pra acreditar que é possível ir longe, se nos limitamos a explicar o que significa handicapes.

O interessante é que hand significa mão. Nenhuma pesquisa, que almeja obter resultados práticos positivos, pode avançar qualitativamente se não contar com profissionais dispostos a se empenhar no trabalho e se não tiver a ajuda da família. Todos precisam dar uma mão no estudo e desvendamento das profundidades inerentes às handicapes!

104. Calculadora serve para pensar

Jornal de Cocal: 2005

Tenho uma vaga lembrança da primeira vez que vi uma calculadora. Eu queria mexer, mas não me atrevia “porque não era minha e podia estragar”, segundo meus pais. E, acrescentavam: “Isso é coisa de preguiçoso! Nunca vamos gastar dinheiro com essa porcaria que serve para estragar os alunos.” É claro que essa novidade estava muito distante dos bancos escolares, naquela época.

Depois de algum tempo, quando eu cursava o Magistério, via minhas colegas falando sobre algumas das funções que haviam descoberto. Minha curiosidade aflorava, porém, eu ainda não tinha uma dessas máquinas de calcular e me contentava em observá-las realizando operações com as teclas conhecidas e observando os resultados precisos e magicamente obtidos.

Passado mais um bom tempo, prestes a ter meu diploma de Licenciatura Plena em Matemática, tive um professor chamado Lenoar. Jamais esquecerei da caixa de calculadoras científicas que ele levou para a faculdade, numa certa manhã de sábado. Foi então que, aos vinte e cinco anos de idade, tive a chance de aprender a usar uma tecnologia que sempre admirei. Essa aula foi um marco na minha vida: desde então, tenho me dedicado a explorar os recursos das calculadoras e buscado conhecer maneiras inteligentes de aplicá-las na aprendizagem de matemática.

Tomo a liberdade de relatar um comentário que retirei de um vídeo elaborado pelo Ministério da Educação e intitulado “Fazendo matemática na sala de aula”. Um dos principais educadores do Brasil, Ubiratan Dambrósio, afirma:“Uma das coisas mais intrigantes no sistema escolar é a resistência dos professores à incorporação de tecnologia plena nas suas aulas. Há professores que resistem à utilização de calculadoras e insistem em se dar matemática achando que há alguma importância em colocar um número embaixo do outro e fazer uma adição, uma multiplicação. Isso na História da Humanidade foi um período muito curto e não foi essencial para a grande criatividade que a espécie humana tem mostrado desde a pré-história. O que é condizente à criatividade e vale à pena é a utilização total do que se tem disponível naquele momento. No momento que estamos vivendo hoje, o que é disponível: tecnologias de calculadoras, fliperama, TV, vídeo, computadores, e-mail, Internet. E tudo isso tem que ser incorporado na educação, principalmente na educação matemática que é uma educação que é parte do sistema escolar que deve apontar para o futuro, e o que deve instrumentar o indivíduo para entrar no futuro, para participar do mundo que está se delineando. Isso não se faz sem tecnologia.”

Um colega de profissão, disse-me, veementemente, num encontro de estudos: “Jamais deixarei meus alunos de 5a a 8a série usarem calculadora durante as aulas”. Tenho que respeitar sua opinião porque ele tem seus argumentos. No entanto, acredito que ele - como a maioria dos pais e profissionais da educação - defendem o uso de computadores, de vídeos educativos, de filmes, da Internet e de outros recursos tecnológicos. Então, porque discriminam a calculadora mesmo sabendo que mais importante do que fazer contas de maneira rápida e correta, é interpretar o problema e descobrir quais os passos para se chegar à solução? Por que não ficam sem essa maquininha na hora de fazer as contas do mês e de fechar as médias de suas turmas? Por que a utilizam para verificar quanto receberão de aumento? Por que todos têm uma em casa?

Acho que o medo de que se esteja “emburrecendo” as crianças quando as ensinamos a usar calculadoras, está na falta de conhecimento do potencial educativo dessa simples e barata “maquininha de calcular” que pode ser também, uma “maquininha de pensar”.

103. Pensão familiar

Jornal de Cocal: 22 de junho de 2005

Pouca gente percebe a existência de um prédio antigo, em péssimo estado, localizado na área central de uma grande cidade e que tem na fachada a seguinte informação: “Pensão familiar”. Lá, moram alguns homens que ao verem se desfazer seus lares, encontraram abrigo. É preciso dizer que não é gratuito, portanto, está longe de ser uma instituição de caridade. Este lugar é um exemplo de quanta solidão existe no meio da multidão.

Dentro dos pequenos quartos há apenas uma cama de solteiro, um roupeiro e uma televisão. É como se fosse uma das celas de um presídio de portas abertas, onde alguns criminosos se fecham cumprindo a pena de terem falhado na vida. Os crimes vão desde, não aceitar ficar sentado num banco escolar para garantir um futuro melhor, dar mais valor à bebida do que à esposa, se afastar dos pais sem dar notícias, perder o emprego por não ter se profissionalizado, até, não poder oferecer uma vida confortável à família planejada num momento de plena felicidade ou de sensação de que se devia arcar com as conseqüências de um ato inconseqüente.

Todos pagam a pensão, a comida e os vícios com muito trabalho. Uns, são pedreiros, outros, ajudantes de pedreiro. Uns, são guardas noturnos de rua que desejam ser promovidos a vigilantes de alguma mansão. Uns, fazem biscates, outros, são aposentados. Uns, acreditam que tudo vai melhorar, outros, já se conformaram. Uns, lamentam seu presente, outros, agradecem por não precisar morar debaixo de uma ponte.

Lutando contra as dificuldades, eles esperam pelas primeiras horas da noite, quando após tomar um banho quente, podem descer a escada da pensão e sentar numa mesa de bar para tomar um gole de cachaça, comer um pastel de carne e ovos, fumar um cigarro, jogar baralho ou dominó e conversar com um amigo. E, ali ficam, até chegar a hora de descansar o cadáver vivo.

Apesar das piadas, risadas, brincadeiras e de responder que está tudo bem quando encontram um conhecido, o coração clama por algo um pouco difícil de explicar, mas que certamente não estariam sentindo se tivessem uma casa própria, uma esposa esperando com uma sopa de caldo de galinha e uma criança para pegar no colo.

Por ironia do destino de quem passou a vida na gandaia, ao lado da pensão há uma discoteca, conhecidíssima por ser ponto de encontro entre mulheres interessadas em notas vermelhas e homens dispostos a negociar, quando a situação financeira permite. O som das “músicas de zona” incomoda não somente pelo barulho que dispersa o sono, mas, principalmente pela dúvida que provoca: “Devo ficar deitado, sozinho, tentar descansar pra não faltar no trampo, amanhã cedo? Ah, se fosse só isso não era nada... O dinheiro está acabando. Não adianta querer se não se tem café no bule. O jeito é sossegar e ficar no meu canto.”

Apesar das múltiplas carências que perseguem essas pessoas, elas são felizes com o pouco que têm. Pode crer!

102. Já fiz tudo o que eu podia fazer

Jornal de Cocal: 2005

Estive fora o dia todo, é por isso que a senhora não me encontrou em casa, comadre. Hoje foi um dia de cão, dos mais sarnentos que circulam por aí! Não sei por onde começo a lhe contar tudo que passei por causa dessa sua afilhada. Estou sem saber o que fazer com essa desmiolada que Deus me deu pra pagar meus pecados. E, por favor, não diga para eu não falar desse jeito.
Ano passado, quase toda semana eu era chamada na escola. Aliás, ela já está me incomodando desde que tinha dez anos. Era reclamação de todo tipo: “Sua filha chega atrasada todos os dias. Sua filha sai da sala de aula sem autorização dos professores e fica no pátio, perturbando os alunos que estão em Educação Física. Sua filha puxou os cabelos de uma criança do pré. Sua filha ameaçou bater em outra menina por causa de namorado. Sua filha subiu na carteira e começou a dançar, enquanto o professor de História se ausentou para ir ao banheiro. Sua filha está com notas vermelhas porque não entrega trabalho e falta nos dias de prova. Sua filha está vindo sem o uniforme escolar e sempre responde que lavou e não deu tempo pra secar. Sua filha foi pega fumando no portão do colégio. Sua filha diz palavrões e faz gestos obscenos. Sua filha colocou palitos nas fechaduras das portas e nos causou um grande transtorno. Sua filha jogou um rolo de papel higiênico dentro do vaso sanitário. Sua filha espalhou pedaços de bolacha que servimos no lanche, lá na quadra de esportes.” Sua filha fez isso, sua filha fez aquilo! Sua filha fez isso, sua filha fez aquilo! Eu não agüento mais. Dá vontade de rachar a cabeça com um machado. Não adianta a senhora me olhar assim, como se eu estivesse falando um absurdo. Bater não resolve, só matando mesmo. E, não duvide que isso já teria acontecido se o pai dela soubesse de tudo o que essa menina apronta. Eu escondo porque sei que ele tem pouca paciência e é capaz de mandar ela para o hospital outra vez, toda quebrada.
Não sei como não fiquei louca até agora. É impossível confiar nessa peste. Sábado, pedi que fosse ao mercado comprar algumas coisinhas. Sabe o que ela fez com o suado dinheirinho que o pai ganha como pedreiro? Pintou o cabelo de vermelho. Pra me acalmar, fui à igreja, orei e pedi ajuda ao pastor.
Lembra de quando ela engravidou e sequer sabia de quem? Tive que vender meu celular pra comprar quatro daqueles comprimidos que trazem do Paraguai. Eu é que não ia, nessa situação, criar filhos dos outros, mesmo sendo neto meu.
Hoje, tive que comparecer diante do promotor por causa de um boletim de ocorrência feito por uma professora há mais de seis meses. Quando fui intimada pela primeira vez, disse que não iria lá. Mas, vi que acabaria aumentando os problemas e tive que me sujeitar a essa humilhação. Fiz de conta que eu não sabia de nada, mas descobriram que estive no Conselho Tutelar por outros motivos e fiquei mais envergonhada ainda. O promotor disse que ela terá que prestar serviços comunitários, pois havia outras queixas. Ela já respondeu que “não vai carpir”. Quero ver o que vão inventar pra minha filha fazer. Talvez, seja uma boa lição. Só resta, esperar.
Está vendo que horas são, comadre? Acho que hoje essa menina nem volta pra casa. Quer saber? Prefiro que ela durma na casa do namorado. Assim tenho um pouco de paz dentro de casa. Eu já fiz tudo o que podia fazer. Agora, vou cuidar da minha vida.
Vamos esquecer esse assunto, tomar um café e nos arrumar para o bailão. Essa noite promete! Consegui emprestado da Marilda, um vestido preto, bem colado e comprei umas bijuterias bem lindas. E, pra completar, chegou o perfume que encomendei da Avon. Espero que aquele traste do meu ex, não esteja lá pra infernizar minha festa. Chega de problemas por hoje!

101. O milho comeu a lagarta

Jornal de Cocal: 2005

Denise é irmã gêmea de Débora. À noite, depois do jantar, pegaram seus materiais escolares para fazer as tarefas. Elas deveriam escrever uma história fantástica. Uma queria falar sobre fantasmas que vivem em igrejas e a outra sobre cobras voadoras que moram em tocas que existem nas nuvens. Enfim, depois de muitos risos, iniciaram a redação que tomou um rumo mais engraçado do que irreal. O texto ficou assim:
“Quando amanheceu, mamãe levantou-se e pôs os pés nas pantufas. Foi ao banheiro e lavou a água com o rosto, escovou o creme dental com os dentes e prendeu uma piranha com os cabelos.
Depois de pronta, mamãe foi à cozinha preparar o café da manhã. Ela colocou a chaleira na água para ferver, despejou o copo dentro do leite, passou pão na margarina, cortou um pedaço da faca com o bolo e nos serviu avisando que era pra comer tudo sem reclamar.
Já estávamos com as costas na mochila quando percebemos que era sábado e não haveria aula. Então, resolvemos sentar na televisão e ligar o sofá.
Quando acabou o programa de desenhos animados, fomos ajudar na faxina da casa. Denise limpou a flanela amarelinha com os móveis. Débora tirou os quadros do pó.
À tarde, decidimos passear na Praça do Congresso. Papai nos disse para entrar no banco e sentar no carro de trás. Levamos nossa cachorra que latia o tempo todo, balançando a cabecinha e colocando o rabinho na janela.
Foi divertido ver as pedras tomando banho de sol em cima das tartarugas. Sentimos muita alegria quando jogamos migalhas de peixes para os pães comerem. Havia tantos peixes e tantas tartarugas naquela praça!
O dia foi maravilhoso. Só nos restou tomar um banho gostoso, jantar, colocar um pijama e dormir.”
As meninas leram a história que criaram, se revezando nos parágrafos. Os colegas riram muito. A professora quis saber como surgiu a idéia de escrever aquela redação tão confusa. Débora contou que enquanto escolhiam o tema, lembraram de um fato ocorrido no sítio dos avós paternos. O avô delas, preocupado, disse: “Fui dar uma olhada na roça e percebi que o milho está comendo as lagartas.” Elas não conseguiam parar de rir e isso deixou o deixou furioso. Quanto mais o pai pedia que parassem com as gargalhadas, mais elas imaginavam as lagartas sendo comidas pelos pés de milho. Até que os pais constrangidos, perdendo a paciência, e um famoso ditado se confirmou: “Muito riso acaba em lágrimas.”

100. Isca de isca

Jornal de Cocal: 2005

Quase todos nós já tivemos a oportunidade de acompanhar a retirada de minhocas da terra. Sabemos que basta procurar um terreno úmido e adubado - preferencialmente próximo a um chiqueiro ou num canto da horta onde se acumulam restos de comida - remover o solo com uma enxada e rapidamente veremos esses animais anelídeos se retorcendo desesperadamente. Sem demora, estarão dentro de um pote de margarina ou num vidro de café solúvel – vazios, é claro! - aguardando o momento em que serão úteis - para o Homem, é óbvio! - chamando a atenção de uma carpa. “Esses moluscos – como disse equivocadamente, certa repórter de televisão, pois minhocas apesar de terem o corpo mole não apresentam as mesmas características dos polvos – podem ser reproduzidos em cativeiro e auxiliam na decomposição orgânica, acelerando o processo de formação de húmus”.



Como todo ser vivo que existe na terra parece ter um semelhante no mar, como o leão e o leão-marinho, o cavalo e o cavalo-marinho, o boi e o peixe-boi, o cachorro e o peixe-cachorro, o rato e o cação-rato, o pepino e o pepino-do-mar, não é diferente com as minhocas.


Vi algumas pessoas caçando minhocas do mar na praia do Cardoso, que, aliás seriam usadas como iscas. E para pegá-las era necessária outra isca: fígado de cação. Essa espécie de minhoca pode medir até dois metros de comprimento, porém não se aproveita muito mais que vinte centímetros do seu corpo, pois a parte da cauda é extremamente sensível. Elas são vendidas por um preço que considero alto: cinco reais por vinte pedaços.


Como toda professora, também tenho dificuldades de me desvincilhar da realidade presente em sala de aula. Até as minhocas desenterradas da areia mexeram com as “minhocas da minha cabeça”. Fiquei pensando nas falas de Celso Antunes e Rubem Alves sobre a importância de saber cativar e educar. Imaginei a quantidade de iscas que procuramos todos os dias antes de irmos para as pescarias que raramente são abundantes, freqüentemente dão o suficiente pra sobreviver ou resultam em grandes fracassos. É a nossa luta diária pela qual passamos enfrentando tempestades, sentindo medo de não estar usando os equipamentos corretos e de vez em quando, curtindo o nascer e o pôr-do-sol.


Os pescadores são diferentes de nós professores. Eles sabem qual é o tipo de peixe que tem na área e escolhem a melhor isca; nós temos que capturar diversas espécies simultaneamente, desde aquelas que podem ser pegas com iscas simples, como as feitas de farinha de milho, àquelas que são exigentes e só são atraídas por camarão.
O dono de um dos restaurantes do Farol de Santa Marta contou que a Capitania dos Portos fez um teste com cento e oitenta pescadores da região e descobriu que apenas dois sabem nadar. E acrescentou: “Meu sogro morreu com quase noventa anos, desde criança se criou no mar, viveu pescando e se caísse na água, iria pro fundo na certa”. Os números são impressionantes. Pensei: “Como pode uma coisa dessas! Não parece concebível que pescadores não saibam nadar. Se fossem três, quatro, cinco... mas quase cem por cento deles! Apesar de viverem trabalhando sobre as ondas, eles as conhecem tão bem que não correm risco de morrer.”


Talvez, essa seja uma prova de que é possível sobreviver sem os conteúdos que a escola considera elementar para enfrentar os desafios do mundo. Ou, quem sabe, é um exemplo do quanto os pescadores da educação são capazes de fazer mesmo sem saber nadar direito e tendo algumas minhocas à mão.

99. Chorando para lavar a alma

Jornal de Cocal: 2005

- Por que você está chorando?

- Pra lavar a minha alma.

- Sua alma está suja com o quê?

- Não sei direito.

- Sua consciência está lhe cobrando algo?

- Não. Porém, sinto que preciso chorar para lavar minha alma. É como se eu devesse me desculpar por saber que há coisas importantes nessa vida que não priorizo. Uma dor se espalha rapidamente pelo meu peito quando percebo que estou falhando com as pessoas, com a vida, comigo. Ao entrar na fase adulta, transformei-me num miserável soldado desse mundo civilizado. Passo os dias batalhando e durante as noites planejando, buscando estratégias para não prostrar diante das dificuldades que existem ou que imagino que existam.

- Onde pretendes chegar?

- Num estágio de vida repleto de harmonia. Pretendo ser capaz se sentir o gosto da cebolinha que tempera a macarronada e gastar mais de vinte minutos para almoçar. Pretendo sentir cada gota morna que bate em minha pele na hora do banho. Pretendo ouvir as vozes das pessoas que me amam com mais atenção e freqüência. Pretendo ouvir o som do saxofone do Kenny G sempre que seu CD estiver rodando em meu aparelho. Pretendo voltar a dançar sozinha, curtindo as canções que me fazem bem. Pretendo retornar a escrever em meu diário, sobre os acontecimentos que vivencio. Pretendo ter paciência para curtir o pôr-do-sol e não me sentir uma tola olhando para a lua. Pretendo esfregar com uma boa escova os azulejos do banheiro de minha casa. Pretendo dormir com a televisão desligada. Pretendo colocar talco nos travesseiros de minha cama. Pretendo acender um incenso de lavanda. Pretendo levar flores no túmulo de meu pai. Pretendo fazer uma consulta ao dentista. Pretendo tomar mais chá do que café. Pretendo trocar as almofadas dos sofás que não uso e quem sabe reservar tempo para usufruir de ambos. Pretendo fazer uma blusa de tricô. Pretendo contar histórias do Malba Tahan para meus alunos. Pretendo reduzir a velocidade com que ando nas ruas. Pretendo sentar no banco da praça e ficar admirando as folhas do plátano.

- Pretendo, pretendo, pretendo, pretendo e pretendo.

- Não gosto de fazer promessas que não sou capaz de cumprir. Já fiz e me arrependi!

- Então, continue chorando.

- Não zombe de mim! Essas intenções vão além das palavras e são movidas por uma força que podem mover montanhas. Não estou prometendo nada...

98. A língua da mariposas

Jornal de Cocal: 2005

Em algum lugar alguém escreveu que o filme “A língua das mariposas” é interessante e eu resolvi aceitar a sugestão de conhecê-lo. Assisti, me comovi e guardei a mensagem numa das fitas que registram passagens das minhas aprendizagens. Certa manhã, depois que bateu o sinal avisando que a quarta aula estava para começar, uma magnífica bobagem me fez relembrar dessa desconhecida produção cinematográfica.

Numa pequena cidade da Espanha, pouco antes da ditadura se instalar no país, um garoto de sete anos conheceu um velho professor. Eles eram os principais atores de uma história singela, triste e profunda que foi marcada por uma valiosa amizade. O menino vivia em paz e com o mestre descobria o prazer de aprender, de admirar e explorar a natureza, de viver com os sentidos e os sentimentos. Os ensinamentos do mestre eram práticos, ou seja, as características das borboletas eram estudadas no próprio microscópio ou tendo-as entre as mãos para sentir sua energia e a beleza que emanava das cores que a enfeitavam.

Porém, o professor não era apenas um poeta sonhador encantando com flores, árvores e animais indefesos: tinha um ideal republicano e manifestava sua indignação com o regime opressor. Devido às suas preferências políticas, foi preso pelos rebeldes fascistas e humilhado pela própria comunidade que o devotava. A população apavorada, agiu com a razão e não com o coração. A moral e a ética foram pisoteadas pelo medo do poder das armas.

Voltando à magnífica bobagem que me trouxe essas lembranças... Eu me direcionava à sala de aula, quando quatro meninas me chamaram para tirar uma dúvida. Elas observavam o pico de uma das montanhas das serras - distantes por mais de cem quilômetros - e discutiam se o ângulo que ele formava era ou não reto, ou seja, um ângulo que mede noventa graus: “Professora, a Adriele acha que é um ângulo reto. É ou não é?” Senti-me recompensada, ao saber que a origem daquele questionamento se devia aos conteúdos que eu estava abordando nas aulas de matemática. Poucas pessoas podem entender o que isso significa para uma professora, mas certamente, muitas compreenderam se fizerem uma comparação com a felicidade que sentiram quando ouviram seus filhos falando palavras que ensinaram com persistência e paciência: “Papai, mamãe, água, au-au...”

Esse simples fato é uma prova de que o trabalho que executamos na educação não é em vão. Plantamos sementes que um dia darão frutos e se investirmos nas pesquisas, melhoraremos sua qualidade e teremos um mundo melhor pra se viver.

Qual é a relação que existe entre o professor, o menino, eu e as quatro meninas? Bem, para responder eu teria que contar o final do filme. E, isso não se faz.