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domingo, agosto 27, 2006

106. Quanto você cobra para rezar por mim?

Jornal de Cocal: 2005

Marina voltava da aula de aeróbica quando foi abordada por um menino bem vestido, que educadamente se aproximou perguntando: “Moça, posso lhe oferecer uma revista?” Ela aceitou e seguiu folheando as poucas páginas que mais tarde tentaram lhe mostrar que “ela é filha de Deus e que poderia conhecer melhor as palavras da verdade que iriam iluminar a sua vida e de toda a sua família”.

Havia também um panfleto divulgando uma palestra sobre o poder da mente. Ela conhecia o local do evento, não tinha compromisso para a data e estava interessadíssima pelo tema. Porém, desconhecia a organização responsável e não pretendia ir sozinha. Durante a semana, pesou os prós e contra e mesmo assim, só tomou a decisão poucos minutos antes de acabar o programa do Didi. Sem demora, desligou a televisão, trocou de roupa, procurou passes de transporte, escreveu um bilhete e colocou algum dinheiro na carteira porque poderia sentir fome durante a tarde.

Enquanto aguardava a sinaleira abrir, Marina pensou: “Será que vale à pena? Não seria mais sensato ficar em casa descansando? Realmente, minha mãe tem razão quando diz que sou mais curiosa agora do que quando eu era criança. Se bem que hoje, busco entender mais os mistérios da alma do que os da natureza. Se eu não for, me conheço, ficarei me cobrando! Enfim, vamos ver o que esse dia me reserva.”

Marina sentou-se na segunda fileira de cadeiras. Olhou para os lados, ninguém familiar. Consultou o relógio, já passava da hora marcada para a abertura. Guardou o recibo de pagamento da inscrição na bolsa - aliás, ela não imaginava que teria que pagar para assistir aquela palestra, pois não constava nenhum “valor de investimento” no panfleto de divulgação. Observou o maravilhoso arranjo de flores silvestres sobre a mesa, enquanto um senhor se preparava para iniciar o protocolo. Respirou tranqüilamente e se ajeitou na poltrona, relaxando o corpo um tanto tenso pelas expectativas que havia criado.

Os assuntos abordados se referiam à harmonia no lar, à importância de se acreditar nas próprias capacidades, aos agradecimentos que não podem ser esquecidos, ao sucesso como resultado de muito trabalho e de aplicação de idéias novas. As abordagens dadas pelos membros daquele “movimento filosófico com fundo religioso” – é assim que se denominam - não continham o que Marina esperava. “Talvez - concluiu ela – eu tenha me precipitado pensando que esse encontro fosse mais espiritualizado”.

Durante o intervalo, Marina teve uma surpresa desagradável. Quando se dirigia ao banheiro, viu duas mulheres anotando o nome de pessoas que quisessem receber orações. Uma delas lhe mostrou uma relação numerada de pedidos: emprego, casamento feliz, saúde, concepção, negócios, etc. Marina deu seu nome, sua idade e disse o que desejava que as forças divinas a ajudassem a concretizar. Quando ia agradecer, descobriu que o seu pedido de número onze custava dois reais. É inexplicável a decepção que ela sentiu repentinamente, pois na sua concepção é inadmissível cobrar por uma oração. Não havia fé capaz de aceitar o que presenciou naquela hora. Ela foi sincera: “Tem que pagar? Quanto vocês cobram para rezar por mim? A senhora me desculpe, mas esse papel não tem mais valor, pode rasgar e jogar no lixo. Acabo de receber um balde de água fria na cabeça.” Uma outra senhora, tentou justificar: “Minha querida, você vai receber cinco orações por dia.” Aquela frase foi a gota d’água: Marina não esperou a segunda parte da palestra.

No caminho de volta pra casa, ainda perplexa com o que lhe acontecera, lembrou-se da época em que a igreja católica vendia um “lugar no céu” e de uma vizinha que freqüentemente doava sangue para o sogro e insinuava que ele devia lhe pagar por isso.

Os dois reais que poderiam ir parar na caixinha do “movimento filosófico com fundo religioso”, acabaram nas mãos de um malabarista que ganha a vida exibindo suas habilidades nas sinaleiras de Criciúma. E, provavelmente, Deus viu isso...

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