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domingo, agosto 27, 2006

113. Não sou flor que se cheire

Jornal de Cocal: 2005

Os passageiros do ônibus viajavam tranqüilamente. O sol brilhava depois de passar um bom tempo escondido. O tráfego fluía maravilhosamente. A temperatura estava agradável. O filme escolhido para passar no vídeo descontraía quem não se importava em ver novamente “Debi & Lóide”. A paisagem relaxava a alma de quem se deixasse por ela envolver.

Tudo transcorria normalmente até que numa das rodoviárias, embarcou uma senhora acompanhada de seu cachorrinho. Certamente, alguém já supôs que o sossego do ambiente acabou por causa dos latidos do pequeno animal. Antecipo-me dizendo que não façam julgamentos precipitados. O ser humano é capaz de ser mais inconveniente do que os óxiurus.

À princípio, as conversas daquela mulher com uma vizinha de poltrona, apenas chamou a atenção das pessoas que “sentavam-se nas redondezas”. As perguntas que se faziam davam a entender que estavam se conhecendo: “Onde você mora? É sua filha? Para onde você vai?”.

De repente, o ouvido de algumas vítimas é alugado: “Me casei tarde a ainda me dei mal. Não ganhei nada com o casamento. Não posso dizer sequer que a minha filha foi uma conseqüência positiva, porque a tive ainda solteira. Graças a Deus tenho a Mariana que é uma ótima companheira. Não deu certo porque ele queria mandar em mim. Trabalho desde os doze anos e nunca vivi nas costas de ninguém. Sempre fui independente. Não há nada melhor no mundo do que chegar ao final do mês e poder comprar as coisas com o dinheirinho que é da gente. Já passei muito tempo só cuidando da casa. Trabalho fora porque gosto e não porque preciso. Outro dia, minha comadre disse que eu não parava em emprego nenhum. Me deu uma raiva! Justo ela que só come e dorme. O coitado do marido é que batalha de sol a sol. Não me meto na vida dos outros. Por isso, não admito que venham se intrometer na minha vida. Tá, e essa menina é sua filha?” A outra senhora contou que a garota era neta de sua irmã. Então, a incontrolável faladeira recomeçou: “Ela é bonita, parece uma boneca! Não vejo a hora de chegar em casa, cortar a grama, lavar os cobertores. Quem sabe a chuva não volte tão logo. Não dá pra agüentar o mofo. Sai de casa preocupada. Não confio nos vizinhos. Quando Mariana era pequena, estava no quarto se vestindo e reclamou que o menino da casa ao lado a observava. Fui ver, pensando que fosse um menino da idade dela. Pois, não é que era um dos rapazes! Ah, mas sai pra rua e chamei pra briga. Disse tudo o que eu tinha direito. O que é isso? Ele não veio porque sabe que não sou flor que se cheire. Não faço nada para os outros, mas não pisem no meu calo”. A outra senhora tentou falar alguma coisa, mas imediatamente foi interrompida: “Eu sou muito boa. Sempre fui certa nas minhas coisas. Uma vez eu estava doente, de cama. Pedi pra minha filha ir à padaria; ela respondeu que não ia. Peguei o chinelo e foi pra já que a bichinha tomou rumo. Foi chorando, mas foi! A dona da padaria viu que ela chorava e insinuou que eu ou meu marido tivéssemos batido na menina. Mariana chegou e me contou. Mesmo doente, coloquei uma roupa e sem demora, eu estava na venda. Eu não ia esperar outra hora, senão perde a graça. Logo que entrei, a mulher ficou pálida. Ela sabe que não sou flor que se cheire! Fui educada. Me aproximei, coloque minha mão sobre a dela e mudei o tom de voz. E disse: escuta aqui, eu me meto na sua vida? Você bem sabe que não batemos na Mariana. Cuide da sua família que eu cuido da minha. E nisso o marido dela desceu querendo dar uma de macho. Falei uma verdades pra ele também. Não, não podemos deixar barato. Teve uma vez que a professora da Mariana pisou na bola e eu tirei ela da escola, ela era efetiva e tudo. Eu liguei pra...”

Por sorte, a viagem terminava. Percebia-se um ar de irritação das pessoas que foram obrigadas a ouvir os assuntos daquela insuportável senhora. Nenhum passageiro quis bater de frente com a mulher que “não era flor que se cheire”. Talvez, porque a maioria realmente sabe o que significa “não se meter na vida dos outros”.

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