Há uma mulher sentada no último degrau da escadaria que facilita o acesso do centro da cidade ao bairro onde mora. Lá do alto, ela pode observar a vida urbana fluindo. Sozinha, deixa as lembranças aproximarem-se sem dó, nem piedade.
O Hospital a faz recordar do dia em que uma de suas irmãs provocou um aborto com agulhas de tricô. E ela, ainda se pergunta: “Como eu tive coragem de pegar aquele feto que minha irmã escondeu no tapete dobrado na área de serviço e colocar dentro de uma sacola plástica para levar até o médico que a atendeu após passar mal? Senti-me cúmplice de um ato imperdoável, embora não concordasse. Como seria aquela criança se tivesse sobrevivido?Teria ajudado a própria mãe a encontrar um caminho mais digno que a prostituição? Que Deus nos perdoe. ”
A maravilhosa praça pública era seu espaço de solidão. Quando estava triste, sentava-se na concha acústica e derramava suas lágrimas vendo as águas do chafariz dançando ao som de músicas clássicas.
O IML – Instituto Médico Legal - era o símbolo do desespero. Certa imagem inesquecível lhe atordoou por meses: uma mãe inconsolável segurava o corpo do pequeno filho, separado da cabeça, em um acidente automobilístico.
Um lugar freqüentado em sua juventude era o “Zero Grau”. Localizava-se no mesmo lugar em que construíram um prédio comercial de dez andares. Seu coração a levou ao tempo em que apaixonada, tentava encontrar nas noites de sexta-feira, o homem de seus sonhos. Infelizmente, quando ele aparecia, a ignorava completamente. E, os finais de noite eram sempre tristes.
O Posto de Saúde ainda continua do mesmo jeito. Dói muito saber que uma vez esteve lá para uma consulta com um médico ginecologista. Acabava de perder a virgindade e estava grávida!
Recorda-se das vezes que viu o Corpo de Bombeiros pedindo passagem! Sempre que a sirene tocava, ligava o rádio para saber onde era o incêndio. Houve um dia que não acreditou no que ouvia: a casa incendiada era dos seus pais. Anos de trabalho e parte da história da família viraram cinzas em poucos minutos.
O colégio representa suas maiores decepções e desgostos. Ela perdeu a conta das vezes que lá compareceu por causa das advertências recebidas pelos filhos. Sonhava em vê-los estudando, mas trocaram os livros por “bagulhos”. Acreditava que quando se formassem teriam um emprego decente, porém, preferiram ganhar a vida de uma maneira “mais fácil”.
O Estádio Municipal era freqüentado por muitos torcedores na época em que tinham um time para representá-lo. Ela não sabe se é verdade que os dirigentes faliram o clube “desviando” dinheiro ou se faltou competência. O fato é que depois que seu time foi extinto, nunca mais sentou numa arquibancada...
Aquela mulher percebe que é hora de parar de remexer no baú das tristezas. Mesmo, assim, apoiando-se ao corrimão da escadaria, sente um desejo mórbido de rolar degraus abaixo, perder os sentidos, entrar em coma e nunca mais reconhecer as pessoas que ama. Naquele momento, a rejeição, as dores físicas e o trabalho rotineiro, são mais fortes que seu currículo de guerreira.
A mulher levanta-se e sobe os últimos degraus. Antes de chegar ao final da escadaria, encontra um alcoólatra, uma jovem viúva, uma criança com Síndrome de Down, um ex-presidiário e uma amiga soropositiva.
Nenhum comentário:
Postar um comentário