Jornal de Cocal: dia 13 de setembro de 2006
Havia uma pequena casa rosa situada numa das principais ruas do centro da cidade de Concórdia. Diziam que parte dela era uma antiga caixa d’água. Tinha um modesto jardim que cercava a escada e o caminho da rua até a porta de entrada.
Sempre que eu passava por lá, ficava intrigada. Por que a dona nunca aparecia na área ou na janela? Era verdade que ela não queria que instalassem luz elétrica? Ela realmente era uma pessoa amarga? Não tinha nenhum parente por perto?
Contaram-me que o marido daquela mulher trabalhava numa firma de construção de estradas. Um acidente trágico, tirou a vida dele ainda jovem. Eles tinham um filho que cresceu e foi embora para muito longe. Longe? Aonde? Ele vinha visitá-la? Ninguém sabia direito. Parece que mantinham poucos contatos, pois, nem telefone ela queria ter em casa.
Certa vez, ouvi uma vizinha falando mal daquela senhora solitária: “É uma bruxa rabugenta. Cortei uns galhos de uma árvore dela que estavam adentrando o meu lote. Mas, por quê? Só faltou me bater. Berrou tanto! Resmungou por horas. Se ela fosse caprichosa, teria visto que precisava podar. Não cuida nem das roseiras que plantou. Se alguém tentar entrar lá, vai se arranhar completamente. É um bruxa anti-social.” Fiquei surpresa porque não a imaginava conversando com outras pessoas, menos ainda, discutindo. Confesso que comecei a admirá-la depois desse fato, mesmo sem nunca tê-la visto ainda.
Conheci uma pessoa que quando era criança ia passear naquela casa. Fiquei sabendo de algumas coisas. Nos fundos havia uma fonte de água cristalina. As plantas do jardim eram cuidadas com perfeição; erva daninha não vingava. E aquela senhora era extremamente vaidosa; usava roupas e sapatos combinando e os cabelos sempre ajeitados.
Falavam também que dinheiro não lhe faltava, pois recebia pensão. Comentavam que quando ela voltava do mercado, uns oito ou dez gatos iam encontrá-la. Depois que ficou velha, as forças lhe faltaram. Então, o jeito era pedir ajuda a qualquer estranho que passasse pela rua. Ela chamava as pessoas, já com os trocados nas mãos, pedindo que comprassem uma lata de azeite, um pacote de macarrão ou alguma fruta. Às vezes, solicitava que recolhessem as roupas do varal.
Eu a vi duas vezes. Sofri dois choques inesquecíveis. Uma tarde, respondi aos seus sinais subindo os degraus, nervosa e atenta. Quando cheguei perto, vi que ela vestia apenas um roupão. Meu coração disparou quando notei que estava ferida na cabeça, dizendo-me: “Pensaram que eu não tinha mais sangue. Olha, moça! Te chamei aqui pra mostrar que tenho sangue, sim.” Perguntei: “A senhora quer ir ao hospital fazer um curativo?” Ela continuou: “Não. Só quero te mostrar isso. Eu caí e descobri que ainda tenho sangue. Veja!” Quando falei em pedir ajuda ao Corpo de Bombeiros, ela irritou-se comigo: “Já disse que não quero nada disso. Quero que veja que tenho sangue e que é bem vermelho.” Pra mim, aquilo tudo não era real. Lembro que saí de lá assustada, desorientada e achando que não devia intrometer-me.
Depois voltei com uns pastéis de queijo. Ao entrar na cozinha daquela casa senti nojo, medo, tristeza e desamparo. A mesa estava lotada de comida, pratos sujos e frutas estragando. Havia um mamão inteiro em estado de decomposição, no chão, ao lado de um cachorro. Acho que de tanto pavor, eu me acovardei! Não tive coragem de voltar lá outras vezes.
Fiquei sabendo que aquela senhora morreu sozinha. Depois dela, a casa rosa também foi destruída. Aquele pedaço da rua é como uma foto antiga que revejo raramente. E, enquanto eu tiver sangue, não esquecerei do dia em que fui incapaz de ver mais do que um líquido vermelho ensangüentando pedaços brancos de tecido.
Havia uma pequena casa rosa situada numa das principais ruas do centro da cidade de Concórdia. Diziam que parte dela era uma antiga caixa d’água. Tinha um modesto jardim que cercava a escada e o caminho da rua até a porta de entrada.
Sempre que eu passava por lá, ficava intrigada. Por que a dona nunca aparecia na área ou na janela? Era verdade que ela não queria que instalassem luz elétrica? Ela realmente era uma pessoa amarga? Não tinha nenhum parente por perto?
Contaram-me que o marido daquela mulher trabalhava numa firma de construção de estradas. Um acidente trágico, tirou a vida dele ainda jovem. Eles tinham um filho que cresceu e foi embora para muito longe. Longe? Aonde? Ele vinha visitá-la? Ninguém sabia direito. Parece que mantinham poucos contatos, pois, nem telefone ela queria ter em casa.
Certa vez, ouvi uma vizinha falando mal daquela senhora solitária: “É uma bruxa rabugenta. Cortei uns galhos de uma árvore dela que estavam adentrando o meu lote. Mas, por quê? Só faltou me bater. Berrou tanto! Resmungou por horas. Se ela fosse caprichosa, teria visto que precisava podar. Não cuida nem das roseiras que plantou. Se alguém tentar entrar lá, vai se arranhar completamente. É um bruxa anti-social.” Fiquei surpresa porque não a imaginava conversando com outras pessoas, menos ainda, discutindo. Confesso que comecei a admirá-la depois desse fato, mesmo sem nunca tê-la visto ainda.
Conheci uma pessoa que quando era criança ia passear naquela casa. Fiquei sabendo de algumas coisas. Nos fundos havia uma fonte de água cristalina. As plantas do jardim eram cuidadas com perfeição; erva daninha não vingava. E aquela senhora era extremamente vaidosa; usava roupas e sapatos combinando e os cabelos sempre ajeitados.
Falavam também que dinheiro não lhe faltava, pois recebia pensão. Comentavam que quando ela voltava do mercado, uns oito ou dez gatos iam encontrá-la. Depois que ficou velha, as forças lhe faltaram. Então, o jeito era pedir ajuda a qualquer estranho que passasse pela rua. Ela chamava as pessoas, já com os trocados nas mãos, pedindo que comprassem uma lata de azeite, um pacote de macarrão ou alguma fruta. Às vezes, solicitava que recolhessem as roupas do varal.
Eu a vi duas vezes. Sofri dois choques inesquecíveis. Uma tarde, respondi aos seus sinais subindo os degraus, nervosa e atenta. Quando cheguei perto, vi que ela vestia apenas um roupão. Meu coração disparou quando notei que estava ferida na cabeça, dizendo-me: “Pensaram que eu não tinha mais sangue. Olha, moça! Te chamei aqui pra mostrar que tenho sangue, sim.” Perguntei: “A senhora quer ir ao hospital fazer um curativo?” Ela continuou: “Não. Só quero te mostrar isso. Eu caí e descobri que ainda tenho sangue. Veja!” Quando falei em pedir ajuda ao Corpo de Bombeiros, ela irritou-se comigo: “Já disse que não quero nada disso. Quero que veja que tenho sangue e que é bem vermelho.” Pra mim, aquilo tudo não era real. Lembro que saí de lá assustada, desorientada e achando que não devia intrometer-me.
Depois voltei com uns pastéis de queijo. Ao entrar na cozinha daquela casa senti nojo, medo, tristeza e desamparo. A mesa estava lotada de comida, pratos sujos e frutas estragando. Havia um mamão inteiro em estado de decomposição, no chão, ao lado de um cachorro. Acho que de tanto pavor, eu me acovardei! Não tive coragem de voltar lá outras vezes.
Fiquei sabendo que aquela senhora morreu sozinha. Depois dela, a casa rosa também foi destruída. Aquele pedaço da rua é como uma foto antiga que revejo raramente. E, enquanto eu tiver sangue, não esquecerei do dia em que fui incapaz de ver mais do que um líquido vermelho ensangüentando pedaços brancos de tecido.
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