Pesquisar este blog

sábado, agosto 19, 2006

19. Desenvolvida

Jornal de Cocal: 2003

Ela também morou no interior, foi “mãe” dos irmãos mais novos, catequista dos filhos dos vizinhos, comentarista de culto, vendedora de rifas de festas de igreja, representante do Grupo de Jovens, alvo de fofoca das comadres, apaixonada pelo filho do dono do mercado, rejeitada pelas “arrumadinhas” e ingênua sonhadora.
Muitas vezes, tomou banho em bacia de alumínio, enquanto a água esquentava no fogão à lenha – auxiliada pela esponja natural e por pedaço de tijolo maciço – retirava o máximo possível a craca impregnada no pescoço e nos pés. Economizava sabonete, quando tinha. Esquecia da vida, enquanto a água suja esfriava. Só apressava a higiene nos dias em que as frestas entre as tábuas da parede deixavam o vento passar. Quando as unhas estavam compridas, cortava com uma faca. Corta-unha e lixa eram objetos desconhecidos de seu mundo, embora já conhecesse esmalte, pois ganhara um dia de uma tia:
- Vou lhe dar um esmalte rosinha. Vai ficar lindo! Essa cor é decente. Nunca use vermelho porque é cor de vagabunda.
Os parentes diziam: “A Marica é desenvolvida: lê sem gaguejar todo o Evangelho na
hora que a igreja esta lotada, não fica vermelha quando aperta a mão de estranhos, não sente dores no estômago quando vai pegar o ônibus, sabe preencher cheques, paga contas da família no comércio sem constrangimento, já esta formada no ginásio e até arranjou um cara da cidade que trabalha na produção da Sadia, bem de vida que nossa!”
Cuidou dos afazeres domésticos durante anos: pia, fogão, tanque, filhos, marido. No início estava feliz porque não precisava mais realizar os duros trabalhos do campo: leite, porco, galinha, enxada, carroça, irmãos, pai. O tempo e o ambiente a tornaram uma mulher alienada até se convencer de que 15 anos de dedicação à família e uma década de traições matrimoniais bastavam.
Chorou amargamente pelos laços rompidos, sentiu-se malvada em relação aos filhos, não foi perdoada pelos pais tradicionais e preservadores de valores questionáveis, perdeu amizades importantes e lamentou a passividade que manteve por longos anos. Esbanjou alegria em novos relacionamentos, descobriu o amor pelas pessoas, perdoou as vítimas que feriram sua alma, redescobriu sua beleza e dinamizou a vida até o fim de seus dias terrenos.

Nenhum comentário: