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sábado, agosto 26, 2006

22. Histórias de peão

Jornal de Cocal: 2003

Num desses finais de tarde de sábado, uma senhora idosa sentou na cadeira de balanço que ganhou de presente logo após descobrir que estava com câncer de mama, pegou a Bíblia para ler alguns provérbios e acabou se distraindo com as crianças da vizinhança que brincavam em uma escada móvel.
As crianças riam, corriam, brincavam, gritavam, brigavam, choravam, um adulto intercedias e elas voltavam a rir, a correr, a brincar e a gritar.
Ela recorda que quando era criança adorava correr ao redor do paiol, se esconder entre as madeiras que estavam guardadas no porão, subir nas bergamoteiras desviando os terríveis espinhos, catar ovos, dormir na casa dos primos, colher serralha para os coelhos, olhar a linha do horizonte desenhada pelas copas das árvores e ouvir as fantásticas histórias contadas pelos peões que o pai contratava freqüentemente para ajudar na lavoura.
Havia histórias engraçadas, assustadoras, tristes, emocionantes...
Vardo trabalhou com seus pais alguns dias na colheita do milho. Contou que esteve em Florianópolis, na Colônia Santana, e que se fazia de louco para que as mulheres que cuidavam do lugar darem banho nele. A mãe se irritou com esse fato e só o aceitou até o fim da empreitada por ser submissa ao marido.
O Nego Siqueira trabalhou uma semana roçando mato, adorava uma cachaça e costumava limpar os dentes com os fiapos retirados da vassoura. Ela achava muito nojento, pois a vassoura usada na faxina sempre estava suja, inclusive, de cocô dos gatos que insistiam em fazer seu banheiro em baixo das camas. Esse peão adorava contar as tragédias da família que se perdeu no mundo, dos irmãos que há anos não via, da irmã renegada por ter engravidado de um homem casado, do sobrinho que morreu afogado num poço, do tio que matou o cunhado com quinze facadas e das vezes que sentiu vontade de dar um tiro na cabeça.
Deomar era um dos peões jovens e aventureiros. Tinha fama de bonito, namorador e preguiçoso. Apesar disso, trabalhou muito tempo arando a terra e plantando feijão. Ele contava as história que ouvia de seu pai: de como faziam o transporte de porcos por muitos quilômetros, sem nenhum meio de transporte, usando apenas um pedaço de madeira e espigas de milho; do menino negro que estava no alto de um coqueiro e foi morto por um tiro de espingarda por um italiano racista como se fosse um urubu e das bolas de fogo que encontrava perto do portão do cemitério quando retornava para casa de madrugada.
A Bíblia caiu ao chão, fazendo com que aquela senhora saísse de suas recordações. Uma das histórias que mais a fascinou quando ia à catequese era a do Filho Pródigo e por isso decidi que deixara os provérbios para outro momento.

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