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domingo, agosto 27, 2006

36. Seguro de vida

Jornal de Cocal: 11 de fevereiro de 2004

Na favela conhecida como Boca do Lixo morava Xandreco. Ao lado de seu barraco morava Dona Flávia.
Xandreco detestava o olhar curioso que aquela cinquentona lhe lançava toda vez que se encontravam. Sentia vontade de perguntar: “ Nunca me viu, tacho de banha? Tenho uma melancia pendurada no pescoço, por acaso? Tá com medo que a cobra tatuada no meu braço envenene seu sangue? Acha que sou um tipo de burro ou mula?” Porém, o garoto resolveu evitar estar na rua quando ela passava ou simplesmente virar de costas porque aquela sensação de ser julgado por uma estranha, apesar de ser vizinha, lhe irritava demais.
Dona Flávia percebia que sua presença era desconfortável para Xandreco porque não disfarçava que sentia-se fortemente atraída pela fisionomia familiar que encontrava naquele moleque desmazelado. Queria se aproximar para saber de onde ele veio, se estudava, do que precisava, porque tinha tantas cicatrizes no corpo e o que o impedia de pentear os cabelos. No entanto, ela preferiu observar e investigar indiretamente. Não foi muito difícil ficar sabendo que Xandreco morava com os pais desempregados e mais cinco irmãos, mas além disso, nenhuma outra informação obteve porque ninguém os conhecia e sua aproximação não era desejada.
Um dia o garoto viu Dona Flavia entrando numa igreja e resolveu segui-la:
- Que surpresa! Você me odeia sem me conhecer e resolve se sentar ao meu lado!
- Você é a única pessoa que demonstra algum interesse por mim. Apesar desse seu jeito meio sinistro.
- Não fale uma bobagem dessas, você não me interessa tanto assim. Mas não nego que meu coração pulsa forte quando te vejo.
- Por quê?
- Porque eu tive um filho que era muito parecido contigo. Ele também não gostava de mim e um dia resolveu me abandonar.
- Ele morreu?
- Acho que não. Todos os dias, sonho acordada, que ele volta para meus braços.
- Eu queria que minha mãe me amasse, acreditasse em mim, desejasse me ver vivo e não morto ou no mínimo me apertasse entre seus braços.
- Toda mãe ama seu filho e quer vê-lo alegre, forte, vivo. A sua...
- Ela já fez um seguro de vida pra mim. Está esperando acontecer comigo o que aconteceu com meu irmão para receber uma boa grana. Eu tenho mais valor morto do que vivo, ao menos para ela.
- Me desculpe, eu nunca ouvi alguém falar sobre uma coisa dessas. Que horror!
- É muito triste saber que ninguém se importa com a gente. Ninguém quer saber se você tem alguma fruta na geladeira, um pedaço de sabão para lavar roupa, uma camiseta boa para vestir ou um comprimido pra dor de dente. Aí, a gente tem que dar um jeito... e nossa própria vida pode ser um bom negócio. Afinal de contas quem vive no mundo do crime, mais cedo ou mais cedo ainda, leva chumbo.
- Realmente, viver não é fácil. Eu preciso ir, mas antes gostaria que você devolvesse minha carteira. Vamos, sua dignidade deve valer mais do que algumas moedas.
Xandreco não sentiu sequer vergonha de ser flagrado roubando uma pessoa que lhe demonstrou um pouco de carinho dentro de um lugar abençoado. Ele teve, naquele momento, a consciência de que não demoraria muito tempo para sua mãe receber o dinheiro do seguro.

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