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domingo, agosto 27, 2006

84.Calor humano

Jornal de Cocal: 26 de janeiro de 2005

Um calor infernal tirava o bem-estar de uma moça recém-formada em Biologia e que rodeada de livros, apostilas, exemplares da revista Nova Escola e rascunhos, estudava para o concurso que poderia lhe garantir uma vaga no magistério público estadual catarinense.

As provas estavam marcadas para o mês seguinte, e pensando no futuro profissional, ela não curtiu a alegria que envolve janeiro, com a mesma intensidade que costumava fazer nos anos anteriores. Sabia que, apesar das pessoas reclamarem do “mísero salário de professor”, estariam competindo por um “lugar ao sol” e preocupadas com o risco de reprovação. Afinal de contas, ter um trabalho e principalmente com certa estabilidade, é o sonho da grande maioria que gastou sessenta reais para se inscrever. Já havia comentários afirmando que as provas eram uma farsa, uma maneira de se arrecadar dinheiro e que só “passaria quem eles quisessem”. Com tudo isso fervilhando em sua cabeça, ela se lembrou de amigos que foram aprovados por mérito e de uma célebre frase: “Que vença o melhor!”.

A moça resolveu dar um tempo e descansar. Foi até a cozinha buscar um copo de água gelada, mais para driblar o calor do que para aplacar a sede. Olhou os carnês sobre a geladeira e desistiu de adquirir um ventilador. Percebeu que a cortina da janela da sala, apesar de leve, não se movimentava um milímetro. A luz do sol, tão desejada em outros momentos, chegava a irritar seus pensamentos. Não sabia como voltar a ter harmonia com o mundo!

De repente, ela se lembrou da Praça do Congresso: “É para lá que eu vou. Um lugar bonito, com várias árvores, o barulho da água do chafariz que tem o poder de acalmar quem se aproxima, os passarinhos ciscando ao nosso redor, uma grama deliciosa que relaxa os pés descalços, pouca gente e para chegar lá só preciso enfrentar uns quinhentos metros de concreto.”

Ela separou um pacote de bolachas, dois reais para a água mineral, pão d’água para os peixes, uma toalha para sentar sob as sombras da tipuana, um travesseiro para se acomodar num dos bancos e talvez até dormir. Não esqueceu de colocar na mochila os materiais de estudo e a máquina fotográfica. Pelos preparativos, parecia que estava se organizando para fazer uma excursão e não um simples passeio.

Na Praça do Congresso, uma menina-mulher segurando um bebê no colo, tirava sua concentração do conteúdo da reportagem sobre os métodos de avaliação. De vez em quando, ela fazia uma pausa para observá-la: o olhar distante revelava tristeza, havia tatuagens discretas em algumas partes do corpo (mãos, pés, costas), fumava perto da criança, amamentava e apesar de tudo sua aparência era angelical. Finalmente, a moça achou um pretexto para se aproximar das duas meninas: ofereceu o travesseiro - que se comparava a um colchão diante do tamanho daquele “pedaço de gente - para a mãe deitar a filhinha que dormiu tranqüilamente, após brincar muito. Apesar da discrição, a moça descobriu que enquanto tentava fugir do calor, aquela jovem mãe fugia dos problemas pessoais que aumentaram com a separação do marido.

A moça preferiu não tocar nas feridas que estavam na alma alheia porque não se sentia capaz de ajudar a cicatrizar. Naquele dia, soube que encontraria nas salas de aula, alunos carentes de um lar estruturado e prometeu que seria zelosa com as vidas que por suas mãos viessem a passar, pedindo calor humano. Mas sentiu medo, muito medo de não dar conta...

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