Quando eu era uma menininha de seis anos briguei com um colega da escola por causa de uma caixa de lápis de cor. Ele me deu um empurrão que resultou num corte na testa. Semanas depois, deitada no colo de papai, eu ainda soluçava inconformada com a pequena cicatriz que marcava meu corpo.
Mamãe sentou-se no chão e começou a mostrar as marcas espalhadas pelo seu corpo, contando a história de cada uma. Disse-me que ninguém passa pela vida sem ter cicatrizes gravadas no fundo da alma e na superfície do corpo, e que muitas vezes, esses registros são feitos simultaneamente.
Na mão direita dela, mais precisamente na ponta do dedo indicador, havia marcas de três cortes se entrecruzando. Ela lembra que os fez desfolhando galhos de coqueiro que serviam de pasto para o gado. Por não ter habilidade no manuseio da foicinha que usava para fazer esse trabalho, acabou ferindo também outras partes dessa mão, que era a grande vítima, pois mamãe era canhota.
Na época das bergamotas, ela e seus irmãos, costumavam pegar uma lata de tinta vazia - que servia como balde – e uma vara com uma forquilha numa das extremidades, para apanhá-las. Num desses dias, ao tentar passar pela cerca de arame farpado machucou levemente as costas, e mesmo assim, ficou uma marca de uns cinco centímetros.
Na sola do pé de minha mãe havia um ponto preto. Ninguém soube explicar como ele não se desfez por décadas, mas ela sabia como surgiu. Quando ela tinha uns dez anos de idade, ao anoitecer, foi brincar nas tábuas retiradas das paredes de um paiol que estavam desmanchando e pisou num prego. Vovó ficou muito preocupada e preparou um banho com água quente, cinzas, sabão caseiro e o próprio prego com o qual se acidentara – diziam que não teriam bons resultados sem a ferrugem do prego. Ela não entendia porque não poderia ser de qualquer outro, aliás, ninguém conseguiu lhe dar uma resposta convincente. Seu pai lhe dizia, mesmo com o coração apertado por medo de que “entrasse o tétano” no ferimento: “Bem feito! Você sabia que era perigoso pular em cima daquelas tábuas. Nós avisamos para não ir lá. Como é teimosa, agora agüenta!”
A lembrança mais dramática de todas as cicatrizes é uma que ela tem na coxa, pois foi mordida por um cachorro que se chamava Lobo e fazia jus ao nome. Todo final de tarde, mamãe ia à casa de uma vizinha buscar um litro de leite para o tio Renato que já não mamava mais no peito. Era sempre a mesma tortura: as mãos suavam frias, o coração pulsava rápido, a respiração quase parava e os olhos atentos não piscavam até aparecer alguém para atendê-la. A sensação de estar salva só era sentida depois que ela passava do portão. Certa vez, se apavorou ao sentir que o cachorro estava a uns poucos metros de suas costas e correu. O inevitável aconteceu: o cão mordeu sua coxa e rasgou seu vestido vermelho de bolinhas brancas. As lágrimas corriam pelo seu rosto enquanto era socorrida. Esse incidente não foi o fim de seu tormento; pior, aumentou quando compraram o “Chimbica”...
Há também uma enorme cicatriz na panturrilha da perna que se deve a uma queimadura ocasionada pelo cano de descarga de uma moto. Ela lembra que era adolescente e foi dar uma volta com um paquera, sem que meus avós soubessem. Naquela época, as pessoas falavam mal das moças que se atreviam a fazer isso, comentavam que era feio. Na hora que se queimou, não lhe pareceu que teria problemas, mas três dias após se formou uma enorme ferida que doía tremendamente. Foi um grande susto, que também passou!
Hoje, mulher feita, penso nas lições que aprendi com minhas nove marcas, das quais não posso falar agora, por falta de tempo. Talvez, eu faça isso na semana que vem, enquanto você faz uma retrospectiva da história das suas cicatrizes.
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