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domingo, setembro 03, 2006

135. É por isso que eu reclamo

Jornal de Cocal: 22 de março de 2006

Eu não queria me intrometer porque havia prometido a mim mesmo jamais contestar novamente as reclamações que ouço nessa casa. O tempo me fez acreditar que sou agradecido demais à vida que tenho em função do que vivi, e por isso, freqüentemente não sou compreendido. Às vezes, sinto que me vêem como um velho tapado, acomodado, inadequado e fácil de ludibriar. No entanto, essa imagem se deve às minhas discordâncias com as maneiras de analisar a vida. Vejo muita injustiça nas suas atitudes e nas palavras que refletem sua opinião a respeito da escola, do trânsito, das roupas, das festas, do calor, da comida, das posturas de seus pais.
Você abre a porta da geladeira com vontade de fazer um lanche. Passa os olhos pelas grades, abre uma expressão de descontentamento e reclama que não há nada de bom para comer. Eu sei que aí dentro têm margarina, doce de abóbora, geléia de pêssego, presunto, queijo, maionese, pão integral, laranjas e mamão. Se quiser pode preparar um suco artificial de manga com água gelada ou optar por iogurte de morango. Se eu tivesse todas essas coisas para me alimentar quando pequeno, certamente me sentiria um príncipe. Raramente, tínhamos algum tipo de “doce” pra passar nas fatias do pão - preparado pela minha irmã de oito anos - com farinha de trigo misturada a de milho. Eu e meus irmãos gostávamos mais do pão “branco”, ou seja, aquele feito apenas com farinha de trigo. No entanto àquela época era caro demais. De vez em quando, meu pai permitia que a gente espalhasse açúcar sobre os pedaços de pão e borrifasse algumas gostas de água para fixá-las. Era uma delícia saborear pão com açúcar. Havia outra coisa gostosa que a gente costumava fazer: passar banha quente sobre o pão cortado em fatias e colocar pedacinhos de alho. A boca fedia pela manhã toda, pois não tínhamos o hábito de escovar os dentes. Aliás, a única pessoa da família que possuía escova, era seu bisavô. E ele só usava quando ia sair...
Percebo a má vontade que tens em relação aos estudos quando você conversa com a Tainara pelo telefone: “a matéria de geografia é uma chatice..., o professor de História complica muito..., os exercícios de matemática são intermináveis..., é um absurdo fazer a gente ler três livros por semestre..., detesto ter que fazer uma releitura da obra de Picasso...,eu não agüentava mais assistir aquela “Guerra do Fogo”..., porque é que ela não faz a experiência, eu sou aluna e não professora..., não me deixaram entrar no MSN na aula de informática... que nojo, amanhã tem prova!” Fico pensando no quanto chorei ao descobrir que minha carreira escolar seria interrompida porque eu precisava ajudar na roça. Sentado num sofá de molas que saltavam pelos buracos, eu sabia que o sonho de me formar no 1o Grau estava acabado pelas dificuldades financeiras. Hoje, é tão fácil estar numa sala de aula e você não valoriza. Apesar de tudo, na escola se aprende coisas importantes, dificilmente ensinadas em outros lugares.
Seu roupeiro está desorganizado. Suas roupas são tantas que precisas de uma tarde toda para arrumá-las. Mesmo assim, perturbou seus pais durante uma semana inteira, dizendo que não tens roupa para ir nessa tal de “dez cinqüenta e um”. Infelizmente, eles cederam, sabendo que o orçamento anda apertado. Erraram e no fundo sabem disso. Eu lhe asseguro que eu seria capaz de dobrar em dez minutos todas as roupas que tive em minha adolescência. Os sapatos, nem vou por em pauta...
Há mais coisas que quero lhe dizer quando eu voltar da missa. Espero que pelo menos continue me ouvindo. Com licença, não posso me atrasar. Acho falta de respeito entrar após iniciar a celebração!

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